Nem tão quiet, nem tão quitting
Ou, o que o (meu) burnout tem a ver com o "quiet quitting"?
“Você não está se demitindo do trabalho, está apenas desistindo da ideia de ir além por causa dele”, disse um usuário desconhecido do TikTok. O rapaz, chamado Zaiad Khan, usou imagens de Nova York ao som de uma música “tranquila” para falar sobre um conceito que viralizou no mercado de trabalho e (já) foi repetido à exaustão por aí: "quiet quitting”.
O quiet quitting não é exatamente uma tendência, é mais um conceito de que a pessoa pode fazer “apenas o bastante” no trabalho, sem adicionais, sem extras. Sem precisar, como diz o pessoal do mundo do RH, "engajar nos valores da empresa”.
Para alguns, a atitude é vista como um “contra-ataque” da geração Z ao sonho cultuado por millennials: unir o propósito de vida ao profissional. Para outros, é apenas uma forma de os “jovens” dizerem que não querem trabalhar.
O que não pode ser ignorado é que o termo, ou melhor, a ideia, veio logo após o movimento de demissão em massa que aconteceu entre jovens e empresas de tecnologia. E que ele é uma forma de as pessoas se protegerem de uma outra grande buzzword do mercado de trabalho: o burnout.
Por que falar de estratégias para evitar o esgotamento é “se demitir/ quitting”?
A saúde mental é tema de postagens no LinkedIn, palestras internas e até de áreas inteiras nas grandes empresas. Mas, por que na hora de falar sobre burnout, o assunto vira “silencioso/ quiet”? Por que falar de estratégias para evitar o esgotamento é “se demitir/ quitting”?
Tudo me parece um eco do que passei e é algo que quero dividir. Sim, estou me recuperando de um burnout. E, sim, passei esse tempo todo com vergonha de dar nome ao processo, em parte porque não sabia que se tratava de um esgotamento e em parte (uns 70%) porque tinha vergonha de admitir para todos que estava passando por uma crise dessas.
O BURNOUT É "QUIET"
A mistura de uma personalidade ansiosa com a cultura corporativa de uma startup e a pandemia criou uma bomba interna que eu não percebi que estava prestes a explodir. O burnout é tão “quiet” quanto o quiet quitting. No começo, você acha que é um cansaço que poderá ser debelado por uma boa noite de sono ou um final de semana de descanso completo.
Quando conseguia concretizar tais objetivos – e começou a se tornar cada vez mais raro, de fato, conseguir – o resultado não era o imaginado. Eu continuava exausta. Me sentia ainda mais falhando na vida. Não conseguia nem ao menos fazer o básico.
No trabalho, nem preciso dizer a quantas ia meu dia a dia. De uma hora para outra, o rendimento caiu, as entregas foram ficando cada vez mais difíceis. Não conseguia aprender nada novo e também não fazia direito aquilo que costumava tirar de letra.
A sensação é que você está descendo, ou melhor, rolando escada corporativa abaixo. Tudo contribuía para que a sensação de fracasso se tornasse cada vez maior.
A culpa também foi uma companheira – silenciosa – nessa jornada. Tentava encontrar explicações e justificativas para o esgotamento. A única resposta que surgia era a de sempre: cansaço, exaustão.
Porque eu simplesmente não sabia nomear o que estava se passando comigo, não conseguia dividir com os outros. Quando falava que estava cansada, que estava exausta, que só queria um pause de tudo, a resposta de amigos e colegas era “está todo mundo cansado pra c*ralho” (ou frases variantes dessas, talvez com mais ou menos palavrões, Mas minha memória pode falhar).
A sensação é que você está descendo, ou melhor, rolando escada corporativa abaixo.
A cultura inspiracional que me guiava tampouco me ajudou a detectar o burnout. Na verdade, me atrevo a dizer que ela ajudou a normalizá-lo.
Todos ao meu lado pareciam na mesma posição que eu no sentido de ter que equilibrar muitos “pratos” ao mesmo tempo. Todos estavam amontoados em calls e em reuniões online, trabalhando de casa. Todos estavam presos em telas por horas demais (e esse era um tema recorrente de conversas, inclusive). Todos se sentiam cansados e estavam sempre contando os dias para as próximas férias. E quando digo todos, digo até mesmo as pessoas que não trabalhavam na mesma empresa que eu. Era uma sensação generalizada.
Por que só eu estava daquele jeito? Talvez não fosse só eu. Talvez não seja só eu. Por isso estou aqui, escrevendo.
AS EXPLOSÕES NÃO SÃO QUIETAS
Seria bonito para a narrativa, ou melhor, o para o storytelling (já que estou toda trabalhada nos termos em inglês), dizer que eu percebi o burnout assim que ele tomou conta da minha vida pessoal. Que percebi a exaustão quando não consegui comemorar que minha mãe tinha se curado de um câncer (porque estava muito focada em atingir metas impossíveis no trabalho). Que percebi a exaustão quando não consegui sentir nada além de uma profunda tristeza e insegurança quando abracei pela primeira vez meus amigos fisicamente depois de um ano e algo (porque estava preocupada em não entregar o que precisava na semana). Que o botão vermelho ligou quando minha saúde física pediu ajuda (mas não tinha tempo para marcar médicos. E, afinal de contas, quem ia ao hospital ou fazer exames em meio a uma pandemia, mesmo?).
Mas demorou bem mais tempo que isso. Precisei passar alguns meses num limbo mental para entender. As semanas se arrastavam e a lista de tarefas se acumulava. O sacode veio a partir de uma conversa dolorosa com minha analista: “por mais que falem bastante sobre isso, não é normal se sentir triste assim no domingo à noite”. “Você não precisa ser tudo isso”.
a saída individualizada do esgotamento não traz a solução para uma cultura que cria burnouts e quiet quittings.
Não era normal moldar minha vida a todas as expectativas do trabalho. Não era razoável apostar tantas fichas na vida profissional. Não era factível. Não era possível, e eu estava queimando muito combustível para isso. No caso, o combustível era a minha própria energia.
A ficha caiu, paradoxalmente, quando tudo parecia dar certo no trabalho. Entendi que não estava bem e não tinha energia para suportar nem mesmo o sucesso. E que eu estava perdida na tal jornada, aquela palavrinha que falam tanto nas postagens do LinkedIn.. A saída foi o quitting. Não o quiet, mas aquele que é feito desde que o mercado é mercado e o trabalho é trabalho.
Na época, achava que sair da minha posição me traria paz. E aí que vem o plot twist: não trouxe. Não adianta reacender o pavio de uma vela derretida. O que eu precisei foi reaprender a trabalhar. Reavaliar o que a carreira significava para mim e dimensionar o peso que ela teria na minha vida.
Sei o que é essa equação? Não, ainda não sei. E tenho ideia de que a saída individualizada do esgotamento não traz a solução para uma cultura que cria burnouts e quiet quittings.
PRODUTIVIDADE A TODO CUSTO
O irônico aqui é que, nesse sentido, dou razão ao Zaiad Khan: não temos que colocar todo o valor da nossa vida no trabalho ou na produtividade. E essa é uma outra caixa de pandora.
O que ele não falou no vídeo é como é difícil para a minha geração millennial – e aqui vale outro recorte, a minha geração milennial urbana e tecnológica – desvincular a produtividade de todas as partes da nossa vida. Fazemos listas de filmes, de livros, de álbuns para escutar. Somos viciados nos rankings de melhores obras, melhores artistas, melhor roteiro. Nem TV assistimos mais: maratonamos séries.
Viagens não bastam, é preciso tatuar Wanderlust. Conhecer muitos pontos turísticos, tirar milhares de fotos, postar algumas (só as melhores, ou talvez as mais “espontâneas”, se esse for seu estilo). Não importa se as fotos correspondem ou não ao lugar viajado. Tem um hobby? Por que não monetizar isso? Criar um Instagram, um TikTok, um canal no YouTube, um podcast?
A produtividade faz parte da nossa vida pessoal, a gente saindo ou não das empresas. E é aí que o quitting não toca. Postamos mais e mais, numa competição com a gente mesmo. A superação é amiga da felicidade. A zona de conforto deve ser evitada a todos, todos, todos os custos. Mesmo que esse custo seja queimar a si mesmo.
Até mesmo o autoconhecimento é espaço para mostrar produtividade. Para chegar na felicidade precisamos fazer terapia, meditação mindfulness, yoga, organizar a rotina, criar um bullet journal e usar algum aplicativo para compreender nossos hábitos. Nesse meio tempo, também temos que nos inteirar sobre as novidades políticas, as atualidades caóticas do clima em chamas e nos posicionar em nossas redes sociais.
A produtividade faz parte da nossa vida pessoal, a gente saindo ou não das empresas. E é aí que o quitting não toca.
Enquanto isso, a caixa do WhatsApp enche. São amigos, crushes e colegas que querem resposta imediata a seus anseios. Às suas perguntas. Se você não responde, pode ser acusado de não ser “emocionalmente responsável” e de negligenciar os outros. Como pode seu status estar online e não falar com ninguém? Como pode não responder assim que viu a mensagem?
O próprio desabafo de Khan é uma mostra disso: um vídeo sobre cansaço, milimetricamente editado e publicado para todos verem, em uma rede que entrega o conteúdo para todos, até aqueles que não te seguem. Sob o olhar de quem analisa mídias sociais, o desabafo de Khan foi bastante produtivo.
A roda do engajamento massacra a gente de todos os lados. E, diferente do mundo profissional, ainda não podemos nos demitir dessas áreas. Nem mesmo silenciosamente. Se engana quem acredita que isso tudo não pesa na nossa exaustão. Para mim, pelo menos, pesou. E, para essa cultura – não a corporativa, a digital –, eu ainda não soube redimensionar. Muito menos recalcular. Para ela, não há saída individual.
Não sou psicóloga, muito menos socióloga ou especialista em mercado de trabalho. Não consigo dizer para vocês como a geração Z se posiciona ou o que ela quer do mundo profissional. Não pretendo generalizar o sentimento de todos, só dar uma voz ao que antes era quiet. E dizer para quem esteja passando, ou já passou por isso: vocês não estão sozinhos.