A vergonha como um caminho de “esclarecimento”

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Seguindo a trilha dos cinco passos para se tornar uma pessoa ou uma organização antirracista, apresento o segundo passo, que na verdade é um sentimento, a vergonha.

É fato que história colonial tem sido muito negada no nosso mundo ocidental, mas se trata também de um processo histórico, e é sempre bom lembrar que a questão racial, ou a questão do racismo, não é um processo moral. É muito importante lembrar que o racismo não tem a ver com moralidade, por isso justificativas como: “eu tenho até amigos negros, meu bisavô era negro”, não colam. O debate do racismo tem tudo a ver com responsabilidade, é um processo psicológico que começa com a absoluta negação, e por isso as frases acima citadas não são capazes de abafar a prática racista. Que depois passa à culpa – “sim, mas não fui eu, são vocês” – também está muito ligado à descrença – “não acredito, não foi assim, foi de outra maneira” –, e depois se transforma em vergonha.

Dentro do debate do racismo, a vergonha pode servir como um processo muito construtivo, porque é neste momento que as pessoas brancas repensam e começam a reparar que, talvez, a forma como elas se vêem talvez não seja a forma como os que estão nas margens as vêem; que, talvez, as imagens sejam diferentes. E começam, então, a construir um quebra-cabeças com essas várias peças e que, quando montado, aponta para o que chamamos dentro do debate racial de Branquitude. 

A branquitude nada mais é que o privilégio que uma pessoas tem somente pelo fato de ser branca e esse privilégio só se sustenta por conta da estrutura do racismo que empurra pessoas não brancas para um lugar se subalternização, precarização e medo. O fenômeno da branquitude está mais precisamente na política, na economia e na cultura. Dentro dessas classificações de branco existem o encardido, que aparece na obra de Lia Vaine Schumann na figura do nordestino, o branco que é o chamado FariaLimer e o branquíssimo, categoria em que estão os chefes dos FariaLimers. Pois bem, é isso mesmo: se você é branco e está lendo esse texto, saiba que a sua brancura lhe confere uma série de privilégios. 

Assim como a sua cor branca chega primeiro para lhe conferir privilégio, a minha cor preta chega primeiro para me conferir desvantagens. 

A noção da brancura representa o poder, a opressão, e daí surge a pergunta: “Como eu começarei a desconstruir isso?”.  Uma das sugestões que eu posso lhe dar é se abrir para o conhecimento, com leituras críticas e abertas a respeito não só do racismo, mas também das condições perfeitas que ele criou ao longo de 350 anos para pessoas brancas. Um esforço rápido pode nos trazer à memória de que boa parte do que lemos sobre escravidão negra no Brasil foi durante o ensino médio, além de uma leitura bem vagabunda para passar no vestibular. Essas leituras são rasas e objetificadas, e por si só não têm poder, o poder como possibilidade, de nos levar a uma compreensão maior do problema social causado pela escravidão negra no Brasil. 

A branquitude é o cartão postal do Brasil e é ao destrui-la que o não negro encontra a única possibilidade de encontrar a chave mestra para o antirracismo. Não há como ser antirracista sem abandonar o privilégio branco, e não há benefícios práticos para a comunidade negra no reconhecimento do privilégio branco de algumas pessoas. É preciso repartir o malote, malote que pode ser entendido como várias coisas, inclusive como dinheiro. As inclinações do tempo presente ainda apontam para uma ideia de superação do racismo por vias do consumo. Milton Santos, grande intelectual negro e professor da USP, já apontava esse erro desde 1992, e é o próprio Santos quem passou a reivindicar uma nova narrativa.  

A branquitude é o cartão postal do Brasil e é ao destrui-la que o não negro encontra a única possibilidade de encontrar a chave mestra para o antirracismo.

A vergonha, a contento, pode nos levar para um sentimento de pena, que abre espaço para o White Savior, figura essa que sempre aparece nas fotos de brancos visitando a África. Não é sobre White Savior, é sobre como a vergonha produz um antídoto que nos cura dos nossos próprios privilégios e nos empurra para o caminho da generosidade, generosidade esta que constrói coletivamente o ambiente em que queremos viver e coexistir, que nos tira da competição e nos leva para coopetição. É sobre essa vergonha que se transforma em um gatilho para o bem que eu tentei falar.  

Esse é o processo da vergonha: um ambiente de reflexão, muito construtivo, positivo, que leva a outra etapa – que é a do reconhecimento que nos faz sentir culpa. Isso pode ser perigoso, mas isso eu pretendo explicar no próximo texto.

Recomendo ler esse texto ouvindo a música: Problema social, de Neguinho da Beija-Flor. 

Não aprendia as maldades que essa vida tem/ Mataria minha fome, sem ter que lesar ninguém/ Juro que não conhecia a famosa FUNABEM / Onde foi minha morada desde os tempos de neném /É ruim acordar de madrugada pra vender bala no trem/ Se eu pudesse tocar em meu destino, hoje eu seria alguém/ Seria eu, um intelectual /Mas como não tive chance de ter estudado em colégio / Muitos me chamam pivete, mas poucos me deram apoio moral.

Se eu pudesse eu não seria um problema social/ Se eu pudesse eu não seria um problema social


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