Representatividade negra não é poder negro
“Algo deve mudar para que tudo continue como está”.
Essa frase foi escrita por Giuseppe Tomasi di Lampedusa, um importante pensador italiano, em sua obra “O Leopardo”, que narra a decadência da nobreza italiana no final do século 19. Somos apresentados aos Salina, uma família da aristocracia que se vê ameaçada pelos ímpetos burgueses e democráticos durante o processo de unificação do Estado italiano.
Apesar da obra nos apresentar os aristocratas e burgueses em lados opostos pela disputa do poder na região, quando damos um zoom out percebemos que a aparente antítese dos grupos não é verdadeira. Há sim lados opostos, mas a oposição se dá nas relações de poder.
Enquanto a nobreza perpetuava o status quo por meio da ideia de graça, de que eram agraciados por Deus ao nascer e, por isso, detinham poder sobre os demais, a burguesia desenvolveu mecanismos mais sofisticados e a partir da propriedade sobre os meios de produção manteve a assimetria de poder com o restante da população.
Ou seja, apesar da mudança no sistema político e econômico, pela perspectiva de quem via de fora, não houve alteração nas relações de poder.
Para a sociedade ocidental, a eficiência de um modelo socioeconômico é dada pela sua capacidade de preservação e potencialização de poder do homem branco, cisgênero e heterossexual nas relações estabelecidas com os demais grupos identitários.
Quando observamos o que seria a mudança provocada pela Proclamação da República no Brasil percebemos que hoje, mesmo 130 anos depois, os membros das principais famílias do que podemos chamar de antiga aristocracia brasileira são os membros da mais alta burguesia no país.
Por que começo falando sobre isso em um texto sobre raça e racismo? É porque o racismo envolve relações de poder. Ele se sustenta na perpetuação do poder estrutural e institucional por parte das pessoas brancas frente a pessoas de pele escura. Portanto, se a assimetria possibilita o caráter sistêmico do racismo, só podemos construir mudanças reais nas instituições quando formos capazes de alterar as relações de poder entre a organização e o indivíduo e entre as pessoas que as compõem.
Existe um perigo na construção atual de diversidade racial que é o de achar que explicar que as coisas deveriam ser diferentes do que são muda a relação estabelecida entre essas coisas. A crença de que ao apresentar o contexto histórico, pesquisas ou até mesmo depoimentos sobre o impacto do racismo na vida daquelas pessoas, sem que haja uma mudança na forma como a instituição está estruturada em suas relações de poder, é míope e não enxerga que representatividade negra não é poder negro, e se não há poder negro há racismo.
Sim, racismo.
“À medida que a sociedade vai se tornando mais complexa, o racismo já não ousa se apresentar sem os seus disfarces”, diz o psiquiatra, ensaísta e militante político Frantz Fanon.
Precisamos entender que a manifestação do racismo e todas as demais formas de opressão são fruto do seu contexto histórico. Isso significa que o racismo vai tomando formas diferentes ao longo da história. Falar de racismo nos anos de 1940, é diferente de falar de racismo hoje e com certeza será diferente de falar sobre racismo em 50 anos. O racismo e a raça, enquanto construções sociais, vão tomando formas diferentes à medida que o meio em observação vai se tornando mais complexo.
Portanto, não é somente quando escuto algo sendo falado entre funcionários de uma loja a partir da minha entrada que há racismo. O racismo está presente na forma como você escolhe encontrar os candidatos para uma vaga na sua empresa. Está presente no dress code de uma reunião ou evento. Se manifesta na ausência de lideranças negras na instituição.
Quando é escolhido começar pela base e não pela liderança existe uma armadilha difícil de escapar que é o processo de inclusão se tornar uma ferramenta de adequação.
Quantas vezes já não me senti entrando num universo, num sistema que já existe e que é um problema meu ter que me inserir nele, abrindo mão inclusive de elementos fundadores da minha existência. Você passa a repensar o jeito que você fala e se veste, adota novas referências de como agir e se portar nos ambientes. Tudo mimetizando as outras pessoas. Você se adequa para não ser excluído. Então, quando começamos a inserir pessoas negras em cargos operacionais e de baixa tomada de decisão, corremos um grande risco de ver que esse processo de inclusão irá negar tudo que a pessoa é e tudo com o que ela pode contribuir no ambiente a que teve acesso.
A INCLUSÃO RACIAL PRECISA SER TOP DOWN E NÃO BOTTOM UP
“Mas aí teremos cotas para lideranças negras nas empresas? Pessoas brancas irão deixar de ser contratadas para que pessoas negras sejam? Isso não é uma espécie de racismo reverso?”
Não, não é.
Racismo é algo estrutural. O racismo está presente em todas as manifestações da sociedade ocidental moderna no que entendemos como referências de beleza, intelectualidade, arte e impacta de forma sistêmica na escolaridade, mobilidade social, acesso à saúde e até expectativa de vida.
É muito pouco o que as lideranças no setor privado entregam de mudanças reais para equidade racial.
Mesmo que a figura oprimida virasse uma opressora, vamos lá: uma liderança preta pode ser mal-educada? Pode. Pode ser preconceituosa? Pode. Pode discriminar? Pode. O que ela não pode é fazer isso sistemicamente.
ESTAMOS CANSADOS DE DIAGNOSTICAR O PROBLEMA, QUEREMOS SOLUÇÕES
Meu recado às lideranças é: reflita sobre quais são as estruturas institucionais que permanecem imutáveis e por quê?
É muito pouco o que as lideranças no setor privado entregam de mudanças reais para equidade racial. O próprio Dia da Consciência Negra foi reduzido a pequenas ações de sensibilização e alguns penduricalhos de gestão que buscam mostrar que algo está sendo feito. Mas será que o que realmente importa está mesmo sendo feito?
Parafraseando Malcolm X, eu diria que as organizações verdadeiramente inclusivas do amanhã são as que estão tomando decisões difíceis no hoje e investindo na construção de meios para que pessoas negras conquistem poder e possam, finalmente, ser protagonistas de suas trajetórias.