No mundo corporativo, a língua é uma arma de exclusão

O autor Caetano W. Galindo fala da importância de refletirmos sobre nosso idioma e de como a linguagem constrói relações de poder

Crédito: Anton Vierietin/ iStock

Rafael Farias Teixeira 4 minutos de leitura

A formação da língua portuguesa como conhecemos no Brasil passou por uma jornada mais complexa do que nos é ensinado. No livro “Latim em Pó”, o professor e autor Caetano W. Galindo expõe o trajeto do idioma, reconstituindo essa história cheia de desvios, muitas vezes considerados “erros”.

Começando pela Europa e pelo latim, com especial atenção a Roma, passando pela Reconquista e pelo colonialismo na África e na América Latina, o autor traça um panorama amplo e compreensível da nossa língua materna.

Galindo conversou com a Fast Company Brasil sobre a importância de refletir sobre nosso idioma e como ele cria uma relação de poder dentro do ambiente corporativo.

FC Brasil – O livro desconstrói algumas percepções que temos sobre o nascimento da nossa língua – e até de qualquer língua. Qual a importância de fazer esse tipo de exercício?

Credito: Sandra Stroparo

Galindo – Acho fundamental democratizar a reflexão sobre a língua, sobre a linguagem. A gente vive imerso no universo da linguagem. Somos formatados por ele. E, no entanto, fora dos cursos de Letras, o idioma é tomado por mitos, pré-concepções atravessadas, meias verdades cristalizadas. Há muito a se aprender, para cada um, quando se decide repensar as bases de tudo isso.

FC Brasil – Na sua opinião, nós, falantes do português, temos uma concepção negativa do idioma?

Galindo – No caso do Brasil, há essa ideia de que não somos exatamente donos da língua. De que não falamos bem. De que as formas mais típicas do português brasileiro (no contraste com o português europeu) são ruins, são erros e perversões. Precisamos tomar posse da nossa língua de verdade.

FC Brasil – No livro fica claro que a forma como falamos, escrevemos e nos comunicamos é uma relação de poder. Como vê o "falar certo" no momento atual?

Galindo – Sempre foi, em todos os idiomas das grandes sociedades, uma questão de poder. De um grupo impondo sua variedade de língua como a única correta.

No Brasil há essa ideia de que não somos exatamente donos da língua. Precisamos tomar posse da nossa língua de verdade.

Uma singularidade do Brasil é que a variedade que a escola tentou, durante muito tempo, impor, na verdade não é de ninguém. Nem mesmo da elite econômica. É um construto, um desejo, uma meta jamais atingida.

Acho que hoje estamos, como sociedade, maduros para enfrentar esse tipo de imposição sem sentido. Para questionar essa ideia e tentar flexibilizar as atitudes e os usos.

FC Brasil – No mundo corporativo, é muito comum ver essa relação de poder, com executivos de cargos mais altos corrigindo e criticando "erros" de iniciantes ou de profissões tidas com mais humildes. Como vê essa relação, nesse cenário específico?

Galindo – Ela se transporta e se redesenha em cada ambiente que a gente conheça. No mundo corporativo, essa relação há de tomar também as características desse meio, de hierarquia, de poder, de manipulação. Mas o essencial se mantém. É sempre uma arma de exclusão e de "humilhação". E é das mais poderosas.

Até porque, o histórico desse sistema faz com que a "vítima" do preconceito, de certa forma, autorize essa humilhação. Séculos de exclusão fazem com que a pessoa humilhada de fato acredite que está errada, que é inferior, que merece aquele tratamento. Nesse sentido é que essas ideias precisam, urgentemente, ser desconstruídas.

FC Brasil – Que reflexões seriam importantes que pessoas dentro do mundo corporativo fizessem sobre isso?

Galindo – Que a norma culta, da escola, é uma ferramenta poderosa, que dá acesso a todo um mundo, um prestígio e uma "respeitabilidade". Isso não deve deixar de ser verdade tão cedo. Mas que o verdadeiro domínio pleno do idioma vai além dessas regrinhas. Envolve, inclusive, perceber quando elas já deixaram de fazer sentido.

Séculos de exclusão fazem com que a pessoa humilhada acredite que está errada, que é inferior, que merece aquele tratamento.

Ser "dono" da língua é ser alfabetizado em várias alternativas de uso, do informal ao formal, do sério ao jocoso. Você não conversa no elevador usando a língua que usa na comunicação interna da empresa. E vice-versa.

Mas, quando você entende de fato as regras desse sistema de transição, de passagem de um nível a outro, de uma variedade à outra, pode de fato se tornar mais "dono" da língua. No meio corporativo, até onde eu consigo enxergar, há também o problema do jargão, dos vícios repetitivos, que fazem com que todos, de repente, usem as mesmas fórmulas, palavras, expressões.

É bem verdade que usar esses termos é "pertencer". Mas perceber os vícios e se distanciar deles também vai marcar você como uma pessoa mais independente.

FC Brasil – Por que “Latim em Pó”?

Galindo – O título veio antes do texto. Poderia dizer que vem lá dos anos 80, quando eu ouvia a música "Língua", de Caetano Veloso, e ficava chocado com o poder de síntese dos versos.

O fato é que, quando me decidi a escrever algo nessa veia, o título veio sem nem precisar pensar. Acho a metáfora muito certeira. Não me incomoda que alguém precise pensar duas vezes para entender qual é o tema do livro. Fazer alguém pensar duas vezes, desde a capa, é uma vitória!


SOBRE O AUTOR

Rafael Teixeira Farias tem mais de 14 anos de carreira em jornalismo e marketing digital, além de sete livros de ficção já publicados. saiba mais