Regras do setor de investimentos podem ajudar a combater abusos nas redes
Em julho de 2021, logo após a derrota da Inglaterra na final da Euro 2020, as plataformas de mídia social foram inundadas com comentários racistas direcionados a jogadores de futebol negros. A “trollagem” online foi conduzida por milhares de contas anônimas e perfis falsos, em um claro exemplo de como a ausência de responsabilização abre brechas para comportamentos antissociais e criminosos.
O mais assustador é que este incidente é apenas a ponta de um enorme iceberg. Adolescentes que cometem suicídio por causa do cyberbullying, casos de interferência eleitoral e até de recrutamento para o terrorismo são resultados do anonimato online, uma ameaça à sociedade. Repetidos pedidos e petições já foram encaminhados às plataformas de mídia social, para que elas passem a verificar as identidades de seus usuários e resolvam esse problema.
Tradicionalmente, nossa sociedade é construída com base em leis que são projetadas para nos responsabilizar por nossos atos, e os transgressores são passíveis de processo. No entanto, conforme a sociedade contemporânea se move cada vez mais em direção a um mundo virtual e digital, anônimo e sem responsabilidades, tem se tornado fácil para os indivíduos operarem nas sombras e se comportarem como bem entenderem.
O sistema KYC – sigla para a expressão em inglês Know Your Customer (Conheça o seu cliente) – foi originalmente criado como uma estrutura legal que reforça a transparência e a responsabilidade entre empresas e seus clientes. Esse sistema de segurança tem sido incrivelmente eficaz em setores governamentais, como nos serviços financeiros. No entanto, apesar de estar muito claro que as mídias sociais se beneficiariam da utilização do KYC, parece não haver movimentos dos proprietários de plataformas no sentido de adotá-lo. A pergunta é: por quê?
O ANONIMATO GERA IRRESPONSABILIDADE
Voltando ao exemplo do racismo no futebol, percebemos que as inibições ficam reduzidas quando a identidade das pessoas não é pública. Estudos acadêmicos têm confirmado que o anonimato online oferece um lugar seguro para aqueles que desejam prejudicar os outros, pois diminui a sensação de responsabilidade pessoal. Estamos vendo isso acontecer em microcomunidades, como as de jovens estudantes que devastam a vida de colegas com a prática de bullying. Mas o fato de que o anonimato acoberta transgressões também fica aparente no nível macro, como acontece com a radicalização de indivíduos que se tornam facilmente recrutáveis por algumas das organizações terroristas mais perigosas do mundo.
ESTUDOS ACADÊMICOS TÊM CONFIRMADO QUE O ANONIMATO ONLINE OFERECE UM LUGAR SEGURO PARA AQUELES QUE DESEJAM PREJUDICAR OS OUTROS.
Parece que agora a desinformação espalhada pelas mídias sociais já se tornou parte do processo político e das eleições nacionais. Quando Mark Zuckerberg diz que o propósito do Facebook seria “apenas ajudar as pessoas a se conectar e se comunicar com mais eficiência”, essa defesa parece no mínimo ingênua, dada a realidade de como a mídia social se infiltrou em todos os níveis da vida, transcendendo a socioeconomia e a geografia.
Considerando tudo isso, já passou da hora de o KYC ser adotado pelas plataformas de mídia social. E se elas não querem adotar, precisam nos explicar o porquê.
A TECNOLOGIA FAZ PARTE DA REALIDADE
Se existem leis no mundo físico, elas precisam se refletir no mundo virtual. O sistema KYC de verificação contribuiria para essa equivalência. A consciência de que estão sujeitos a enfrentar consequências legais, incluindo multas, litígios ou processos judiciais, certamente impediria muitos de praticar crimes – especialmente quando eles começarem a ver essas punições funcionando na prática.
O KYC exige que uma empresa prove quem são os seus clientes e onde eles moram – o equivalente à prática tradicional de exigir uma cédula de identidade nacional, um extrato bancário ou conta de luz dos últimos três meses. As plataformas de mídia social têm bilhões de usuários de todos os países, o que tornaria quase impossível aplicar meios tradicionais de KYC. No entanto, startups de identidade digital, como a Onfido for Europe e a Smile Identity for Africa, já estão criando soluções que podem funcionar em qualquer lugar do mundo.
A CONSCIÊNCIA DE QUE ESTÃO SUJEITOS A ENFRENTAR CONSEQUÊNCIAS LEGAIS CERTAMENTE IMPEDIRIA MUITOS DE PRATICAR CRIMES DIGITAIS.
Um dos principais problemas ainda sem solução no sistema KYC é a dificuldade de provar onde as pessoas vivem. Atualmente, existem 4 bilhões de pessoas que não possuem um endereço físico formal, o que representa quase metade da população global. O endereçamento inteligente preenche essa lacuna e permite que qualquer empresa – incluindo a mídia social global – seja responsável por verificar onde seus clientes moram, um componente crítico do KYC.
PÍLULA AZUL OU PÍLULA VERMELHA?
Os donos de plataformas de mídia social têm à sua frente duas opções para definir como elas serão usadas e percebidas no futuro. A primeira é operar sem KYC e manter o anonimato, seguindo o modelo do que acontece no fórum Reddit. Ele cria ressalvas e dá ao usuário a opção de se envolver ou de evitar conteúdos que considere problemáticos. A segunda opção é identificar os usuários por meio do KYC. Quando as pessoas são responsabilizadas pelo que dizem, a informação se torna mais confiável. O Facebook, por exemplo, poderia ser incluído nesta categoria.
EM QUE PONTO ESTAMOS
Ainda estamos muito longe de ter mídias sociais habilitadas para o sistema KYC. Parece haver uma clara falta de vontade dos responsáveis pelas redes sociais para gerenciar e regular adequadamente seus usuários. Além disso, eles não estão sob pressão suficiente dos governos nacionais ou de outras autoridades. Já estamos assistindo a perdas de vidas, perdas na democracia e da paz em nações onde agentes mal-intencionados estão aproveitando o poder das mídias sociais para atingir seus próprios objetivos.
Se o status quo serve mais aos poderes instituídos do que os perturba, cabe aos cidadãos comuns entenderem o custo da sua liberdade nas mídias sociais. Quando decidirmos tomar uma atitude, pode ser tarde demais.