Príncipe Harry: “plataformas sociais precisam se responsabilizar”

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Ao longo do último ano, o Duque e a Duquesa de Sussex, Príncipe Harry e Meghan Markle, se firmaram como defensores de redes sociais mais saudáveis, tema com o qual claramente ambos se identificam, dados os horrendos assédios aos quais foram submetidos – no online e na imprensa.

O casal, que firmou parcerias com organizações voltadas a entender o impacto da tecnologia na sociedade e ativas nas críticas à vida online, está utilizando sua influência para impulsionar mudanças no ecossistema digital. Em um artigo escrito para a Fast Company em agosto do ano passado, o Príncipe Harry conclamou líderes de negócio a repensarem seus papeis como investidores de um sistema publicitário que contribui com a desinformação e a retórica divisiva frequentemente compartilhada nas plataformas sociais.

“Nesse remodelamento, lideranças de indústrias de todas as áreas devem delimitar uma linha contra práticas online inaceitáveis, assim como serem participantes ativos no processo de estabelecimento de novos padrões para o mundo online”, escreveu.

Agora, as mídias sociais estão enfrentando um ponto de inflexão, apenas semanas depois dos ataques no Capitólio que foram concebidos, tramados e organizados primariamente no online. Plataformas poderosas como Facebook, Twitter e YouTube responderam às manifestações com suspensões às contas de Donald Trump, enquanto Amazon e Apple cortaram os laços com a Parler, rede social que estava sendo utilizada pelos manifestantes. Mas especialistas e reguladores acreditam que mais deve ser feito pela reforma das mídias sociais.

Neste cenário, o Príncipe Harry mais uma vez está implorando que as pessoas prestem atenção aos problemas que esses meios trouxeram. Em uma entrevista à Fast Company, ele explica por que as plataformas sociais devem ser responsabilizadas pelo ataque ao Capitólio e as circunstâncias que o viabilizaram, e por que devemos repensar o universo digital antes que seja tarde.

FC: Seis meses atrás, você escreveu um artigo para a Fast Company no qual pediu às empresas que agissem para garantir reformas significativas à “divisiva e não-verificada economia da atenção”. Sua percepção quanto ao papel das mídias sociais mudou nas últimas semanas, desde o ataque ao Capitólio norte-americano?

Príncipe Harry: Quando escrevi aquele artigo, estava compartilhando meu ponto de vista de que as plataformas online dominates contribuíram e inflamaram as condições para uma crise de ódio, uma crise de saúde e uma crise da verdade.
E eu defendo isso assim como milhões de outros que veem e sentem o que esta era causou em todos os níveis – estamos perdendo entes queridos para teorias da conspiração, perdendo o senso próprio por conta desse amontoado de inverdades e, em uma escala maior, estamos perdendo nossas democracias.

A magnitude disso não é exagerada, pois é ressaltada mesmo por aqueles que ajudaram a construir essas plataformas. É preciso coragem para se posicionar, dizer onde foi que as coisas deram errado, oferecer propostas e soluções. A necessidade disso é maior do que nunca. Estou encorajado e grato pela imensidão de pessoas que trabalham – ou trabalharam – dentro dessas plataformas escolhendo se pronunciar contra o ódio, a violência, a divisão e a confusão.

FC: Por que este tópico é tão importante para você? Como o seu ponto de vista foi afetado pelo bem-documentado assédio que você e sua esposa enfrentaram no Reino Unido?

PH: Fiquei realmente surpreso por testemunhar como minha história foi contada de certa forma, a história da minha esposa foi contada de outra maneira e então nossa união inspirou algo que fez essa história ser contada de forma muito diferente.

A falsa narrativa se tornou a nave mãe para todo o assédio ao qual você se refere. Nem teria começado tivesse nossa história sido contada de forma verdadeira.

Mas o importante sobre o que vivenciamos é que nos levou a ouvir muitos outros ao redor do mundo. Pensamos muito naqueles em posições muito mais vulneráveis do que nós, e no quanto há uma necessidade para empatia e apoio reais.

Ao seu próprio modo, cada um foi afetado profundamente pelas consequências do espaço digital. Pode ser algo individual, como ver um ente querido seguir o caminho da radicalização, ou algo coletivo, como ver a ciência por trás da crise climática sendo negada.

Estamos todos vulneráveis a isso, e é por isso que não vejo esse tema como um assunto de tecnologia ou político – é humanitário.
Desde novo, o princípio que norteou minha vida tem sido o dever para com a verdade, a busca pela compaixão e o alívio ao sofrimento.
Minha vida sempre foi sobre tentar fazer minha parte para ajudar os mais necessitados e, agora, precisamos desta mudança – porque toca quase tudo que fazemos e estamos expostos.

“O que acontece online não permanece online – se espalha por toda a parte como fogo: em nossas casas e ambientes de trabalho, nas ruas, em nossas mentes. A questão se torna sobre o que fazer quando o compartilhamento de notícias e informação deixa de ser uma troca verdadeira e decente, mas sim uma troca de armamentos”

FC: E para onde vamos? O que acha que precisa mudar para criar uma atmosfera online onde verdade, equidade e discursos livres sejam priorizados?

PH: Pergunto a mesma coisa todos os dias e conto com os especialistas para ajudar a guiar essa reforma do mundo digital – como o tornamos melhor para nossas crianças, claro, mas também para nós mesmos – agora.

A avalanche de desinformação na qual estamos todos inundados está curvando a realidade e criou esse filtro distorcido que afeta nossa habilidade para pensar claramente, ou mesmo entender o mundo ao nosso redor.

O que acontece online não permanece online – se espalha por toda a parte como fogo: em nossas casas e ambientes de trabalho, nas ruas, em nossas mentes. A questão se torna sobre o que fazer quando o compartilhamento de notícias e informação deixa de ser uma troca verdadeira e decente, mas sim uma troca de armamentos.

A resposta que ouvi de especialistas neste espaço é que o denominador comum começa com a prestação de contas. Precisa haver prestação de contas com o bem-estar coletivo, não somente com o incentivo financeiro. Para mim é difícil entender como as plataformas podem lucrar tanto sem assumir responsabilidade.

Também há de haver prestação de contas comum e compartilhada. Podemos clamar por uma reforma digital e debater o que acontece e como se parece, mas também depende de nós ter um olhar mais crítico diante de nossa própria relação com tecnologia e mídia. Para começar, não precisa ser tão complicada. Considere estabelecer limites de tempo para redes sociais, impeça a si mesmo de rolar a tela ininterruptamente, cheque a fonte e pesquise a informação que você vê, se comprometa em ter uma abordagem e um tom mais compassivos quando posta ou comenta. Essas parecem coisas pequenas, mas fazem a diferença.

Por fim, existe a responsabilidade para com a compaixão em cada um de nós. Humanos necessitam de conexão, laços sociais e senso de pertencimento. Quando não temos isso, ficamos fraturados, e na era digital, que pode infelizmente se um catalisador para encontrar conexão com movimentos extremistas e radicalismos. Precisamos tomar conta uns dos outros, especialmente nestes tempos de isolamento e vulnerabilidade.

“Acho que devemos evitar comprar a ideia de que as mídias sociais são a praça pública moderna, e de que qualquer questionamento à responsabilidade das plataformas no cenário que elas criaram seja um ataque ou restrição de discurso. Acho que é uma escolha falsa dizer que você tem de escolher entre discurso livre ou mundo digital mais solidário e confiável. Não são mutuamente exclusivos”

FC: Desde o motim no Capitólio, big techs como Twitter e Amazon utilizaram seu poderio para determinar quem pode usar seus produtos. Acha que essas companhias devem ter o poder de tomar decisões sobre quem tem acesso a algumas das plataformas mais proeminentes da internet?

PH: Vimos algumas vezes o que acontece quando o custo real da desinformação é desconsiderado. Não dá para subestimar isso. Houve um ataque literal a democracia nos Estados Unidos, organizado nas redes sociais, o que é uma questão de extremismo violento. É sabido o papel que as mídias sociais tiveram no genocídio em Myanmar – foi um veículo utilizado para incitar violência contra o povo Rohingya, é questão de direitos humanos. E, no Brasil, as mídias sociais promoveram condutas de desinformação que culminaram na destruição da Amazônia, que é um problema ambiental e de saúde global.

De certa forma, ter uma abordagem desorganizada em relação aos problemas por tanto tempo, é por si só um exercício de poder.
Recentemente tenho pensado sobre o Speaker’s Corner, uma área no Hyde Park, em Londres, que é utilizada para debates ao ar livre diálogos e trocas de informações e ideias. Costumava ir lá o tempo todo.

Esse conceito de “praça pública” não é nada novo – remonta aos primeiros dias das democracias. Você pode ir lá e falar. Há regras. Você não pode incitar a violência, não pode esconder quem é você e não pode pagar para monopolizar o espaço. Ideias são consideradas ou derrubadas; opiniões são formadas. Na melhor das hipóteses, movimentos nascem, mentiras são desmascaradas e tentativas de provocar a violência são rejeitadas no ato. No pior dos casos, intolerância, pensamentos de grupos, ódio e perseguições são amplificados. E, às vezes, força linhas a serem traçadas e a leis ou regras a emergirem ou serem desafiadas.

Não estou dizendo que deveríamos abandonar a tecnologia e adotar o Speaker’s Corner. Em vez disso, acho que devemos evitar comprar a ideia de que as mídias sociais são a praça pública moderna, e de que qualquer questionamento à responsabilidade das plataformas no cenário que elas criaram seja um ataque ou restrição de discurso. Acho que é uma escolha falsa dizer que você tem de escolher entre discurso livre ou mundo digital mais solidário e confiável. Não são mutuamente exclusivos.

Com essas companhias, neste modelo, temos um pequeno número de poderosos e consolidados guardiões que posicionaram algoritmos escondidos, que escolhem o conteúdo que bilhões veem todo dia e fazem a curadoria da informação – ou desinformação – que todos consomem. Isso altera radicalmente como e por que manifestamos opiniões. Também altera como falamos e sobre o que decidimos falar. Altera como pensamos e reagimos.

Em última instância, deu vazão a versões completamente diferentes da realidade, com lados díspares da verdade existindo simultaneamente. Com isso, o entendimento de alguém sobre a verdade não precisa ser baseado em um fato, porque sempre há a possibilidade de forjar alguma forma de “prova” para reforçar aquela versão de “verdade”. Acredito que isso é o oposto do que deveríamos querer para nossa comunidade online. O modelo atual separa em vez de unir; ameaça ou até elimina diálogos saudáveis e debates razoáveis; acaba com o respeito mútuo que deveríamos ter uns pelos outros como cidadãos de um mesmo mundo.

“Se aprendi alguma coisa, é que as tecnologias dominantes foram construídas para crescer e crescer, sem considerações sérias sobre o efeito desse crescimento. Temos de fazer mais do que simplesmente reconsiderar esse modelo. Os riscos são muito altos e o tempo está se esgotando”

FC: Como você planeja utilizar sua plataforma para encorajar a mudança quando há tanto discurso de ódio, amplificação algorítmica e desinformação em 2021? Já que você não é um especialista treinado nesses assuntos, por que acha que as pessoas deveriam ouvir sua perspectiva?

PH: Eu sei o bastante para ter certeza de que não sei tudo, especialmente quando se trata de tecnologia – mas quando você encara isso como uma questão humanitária, vê que a proliferação de desinformação exige uma resposta humanitária.

Por isso que eu e minha esposa passamos boa parte de 2020 consultando especialistas e aprendendo diretamente com acadêmicos, advogados e criadores de políticas. Também temos ouvido com empatia a pessoas que têm histórias para compartilhar – inclusive pessoas que foram profundamente afetadas pela desinformação e aqueles que são nativos digitais.

Esperamos continuar a ser holofotes para as perspectivas dessas pessoas, com foco em usar a experiência e a energia delas para acelerar o passo da mudança no mundo digital.

FC: Sua fundação, a Archewell Foundation, colaborou com vários grupos e entidades dedicadas a repensar a tecnologia e a estudar o impacto dela nas pessoas. Como filantropo, por que está apoiando pesquisas nessa área?

PH: Se aprendi alguma coisa, é que as tecnologias dominantes foram construídas para crescer e crescer, sem considerações sérias sobre o efeito desse crescimento. Temos de fazer mais do que simplesmente reconsiderar esse modelo. Os riscos são muito altos e o tempo está se esgotando.

Há muitas pessoas incríveis e arquitetos digitais pensando – ou trabalhando – em plataformas inovadoras e saudáveis. Precisamos apoiá-las, não somente porque é o certo a se fazer, mas também porque pode fazer algum sentido comercial. E temos de olhar para o estado da concorrência e garantir que o cenário não esprema indiscriminadamente ou incentive contra ideias frescas.

Acredito que podemos começar a tornar nosso mundo digital mais saudável, compassivo, mais inclusivo e confiável.

É hora de passar do repensar para o remodelar.

FC: Dadas as suas preocupações com divisões, desinformações e discursos de ódio online, como sua visão pessoal sobre o uso das mídias sociais mudou nos últimos anos? Como você as encara hoje? Planeja fazer mudanças?

PH: Engraçado você perguntar porque, ironicamente, algumas semanas atrás soubemos que um jornal do Rupert Murdoch disse que estávamos com certeza deixando as redes sociais. Isso foi novidade para a gente, tendo em mente que não temos redes para abandonar.

A verdade é que, apesar das doenças documentadas, as mídias sociais podem oferecer meios de conexão e comunidade, que são vitais para nós enquanto seres humanos. Precisamos ouvir as histórias uns dos outros para poder compartilhar as nossas próprias. Essa é parte da beleza da vida. E não me entenda mal; não estou sugerindo que uma reforma do espaço digital criará um mundo repleto de arco-íris e raios de sol, porque isso não é realista e não é a vida.

“Esperamos fazer parte da experiência humana – não de um experimento humano”

Pode haver discordância, conversa, pontos de vista opostos – e deve haver, mas nunca a ponto de criar violência, deturpar a verdade e prejudicar vidas.

Revisitaremos as mídias sociais quando sentirmos que é a hora certa – talvez quando pudermos ver comprometimentos mais significativos com a mudança – mas agora estamos colocando muita energia em aprender sobre este espaço e em como podemos ajudar.

FC: Você é otimista ou pessimista em relação a nossa capacidade de construir um ecossistema online mais saudável?

PH: Otimista, claro, porque acredito na gente, como seres humanos, e que somos imbuídos do bem, de compaixão e de honestidade. Aspectos do espaço digital infelizmente manipularam nossas fraquezas e trouxeram o pior, em alguns casos.

Temos de acreditar no otimismo porque esse é o mundo e a humanidade que quero para meu filho – e para todos nós.

Esperamos fazer parte da experiência humana – não de um experimento humano.


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