Produtora de Viola Davis em Salvador exporta softpower brasileiro

A Ashé vai fazer projetos de áudio, séries e filmes na capital baiana. Com brasileiro no time, a ideia é retomar nosso softpower cultural no mundo

Crédito: jeilson/ iStock

Camila de Lira 6 minutos de leitura

O axé da Bahia cativou a multipremiada Viola Davis. Junto do marido, Julius Tennon, e do produtor Maurício Mota, a estrela de Hollywood abriu uma produtora audiovisual em Salvador. O nome da empreitada? Ashé.

Anunciada na semana passada, a produtora já tem alguns projetos em andamento no país. O primeiro é um podcast baseado na obra "Angola Janga", do quadrinista brasileiro Marcelo D'Salete, que conta a história do quilombo de Palmares e de um dos seus principais heróis, Zumbi.

Com lançamento marcado para o começo de 2024, o cast também poderá ser desdobrado em série de televisão e filmes. A companhia já firmou parceria com a plataforma Audible para fazer outros podcasts focados em temas de comportamento, como sobre luto. 

Angola Janga (Crédito: Divulgação)

Além das produções nacionais, a Ashé pretende atrair diretores e roteiristas norte-americanos para escrever e produzir em Salvador, na Bahia. As residências artísticas terão uma condição, no entanto: os artistas estrangeiros terão que fazer workshops e trocar experiências com os baianos. Uma verdadeira usina de propriedades intelectuais multiplataformas.

"É a oportunidade de formar uma nova geração de profissionais negros. Estamos desenhando o ecossistema que terá como uma das consequências a diversidade nas telas", diz Mota.

o Brasil consegue conversar com bilhões de pessoas com raízes da diáspora africana, além dos mais de 750 milhões de latinos espalhados pelo mundo.

O ato de colocar a produtora em Salvador foi intencional. Apesar de morar em Los Angeles, Mota foi criado em Vitória da Conquista, no interior do estado. E a baianidade segue em seu olhar pelo mundo. "Salvador é o grande cavalo de Tróia do nosso softpower, com capacidade de exportar a cultura e a narrativa brasileira", comenta o produtor.

A imagem remete a uma cena que ocorreu há 20 anos, quando o cantor Gilberto Gil, na época ministro da Cultura, apresentou "Toda Menina Baiana" na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

O show foi feito a pedido do então secretário-geral da ONU, o Nobel da Paz, Kofi Annan, que, no final, se juntou a Gil nas percussões. As comitivas dos países dançaram e aplaudiram, música ajudou a dissipar tensões de uma reunião pós-atentados em Bagdá.

Mota diz que, embora tenha a potência cultural, a Bahia é ignorada pelas indústrias culturais brasileira e norte-americana. "Eles prestam mais atenção no Rio de Janeiro e em São Paulo. Quando olham para a Bahia, é quase sempre na visão do exótico ou da porno-tragédia", aponta. 

A Ashé quer mudar essa visão ao dar espaço para Salvador se mostrar. Em um movimento parecido com o que aconteceu com Viola e Julius. Mota diz que os donos da JuVe Productions entenderam o poder de Salvador quando pisaram na cidade.

"Quando eles viram a força intergeracional da comunidade afrobrasileira, entenderam o poder de Salvador para ser a ponte entre o Brasil e Hollywood", conta Mota.

O lançamento da produtora foi feito na capital baiana, com a presença de Viola, Julius e Mota, a pedido da Secretaria Municipal de Cultura da cidade, liderada por Pedro Tourinho.

O NOVO NORTE

As narrativas brasileiras têm capacidade de se conectar com um público que cresce exponencialmente: o chamado Sul Global.

"O Sul Global é a nova maioria. As pessoas querem ignorar, mas a verdade é que as narrativas afrodescendentes vão ser mainstream", afirma Mota. Um exemplo é a série "Cangaço Novo", da Amazon Prime, que surpreendeu ao liderar o top 10 de programas mais assistidos em 24 países africanos.

Cangaço Novo (Crédito: Amazon Prime)

Em termos mercadológicos, a cultura brasileira tem apelo para dois públicos que os norte-americanos lutam para atingir: latinos e afrodescendentes. Segundo Mota, o Brasil consegue conversar com bilhões de pessoas com raízes da diáspora africana, além dos mais de 750 milhões de latinos espalhados pelo mundo.

Mesmo com esse potencial, ainda é uma fatia do público colocada à margem quando se trata de produções audiovisuais. Nesse ponto, a Ashé quer dar protagonismo para as vozes da periferia da indústria cultural, contando também com roteiristas quenianos e um diretor ganês.

As narrativas brasileiras têm capacidade de se conectar com um público que cresce exponencialmente, o chamado Sul Global.

O objetivo é garantir que vozes pretas tenham influência e autoria no que é visto, ouvido e reproduzido no mundo – nada mais, nada menos que o softpower cultural. 

A produtora faz parte do fundo de investimento Reclaim Ventures, que quer retomar o poder e a voz para a audiência que já faz parte da maioria numérica do planeta. "O Sul Global é a nova maioria, então, a gente vai repetir estratégias opressoras ou vai criar estratégias e narrativas novas?", questiona o produtor. 

SOFTPOWER E CULTURA POP

O conceito de softpower é uma forma de poder brando, ou seja, uma maneira de influenciar outros países sem precisar apelar ao uso da força. Normalmente, produtos culturais fazem parte da estratégia de espalhar influência.

Três países mostram que investir na indústria cultural traz retornos incalculáveis: Japão, Inglaterra e Coreia do Sul. Por meio da popularidade de suas músicas, filmes e games, os três conseguiram alterar a imagem que passavam para o mundo e, de quebra, conseguiram mais espaço no imaginário coletivo.

O exemplo mais recente do softpower cultural é a Hallyu, a "onda coreana". Impulsionada por produtos de cultura pop, a Coreia do Sul trouxe interesse e dinheiro para o país. O fenômeno do k-pop e das séries sul-coreanas (k-drama) começou a ser construído nos anos 90.

BTS, mais famosa banda de k-pop do mundo (Crédito: Reprodução/ YouTube)

Na época, o governo coreano fez as contas e percebeu que a receita de Jurassic Park – e tudo que envolvia o nome do filme – foi equivalente à venda de 1,5 milhão de carros Hyundai. A partir de então, houve um esforço coletivo do poder público e privado para investir em cultura.

Para Mota, o Brasil tem que se inspirar na Coreia do Sul. Inclusive, quando o assunto são os aportes privados à cultura. "O softpower brasileiro é mais cosmopolita, porque se conecta com a cultura afro-americana", argumenta.

Além de atuar na indústria do entretenimento em Los Angeles, Mota tem outra conexão com o mundo das artes: é neto de Nelson Rodrigues, considerado o mais influente dramaturgo do teatro brasileiro – além de jornalista, escritor e cronista de futebol.

O Beijo no Asfalto (Crédito: TV Brasil)

Foi por estar procurando formas de expandir a aclamada obra do avô nos EUA que ele acabou se conectando com Viola e Julius. A atriz ficou encantada com as histórias de Rodrigues. Tanto que, em 2019, assinou contrato para adaptar "Beijo no Asfalto" para as telas e os palcos.

Lá em 1958, o avô de Mota cunhou a expressão "complexo de vira-lata" para falar sobre a falta da autoestima do brasileiro em relação ao mundo. Já no novo século, o neto de Nelson Rodrigues quer criar um escudo "antiviralatismo".

"Está na hora de o Brasil superar o complexo de vira-lata, de exportar cultura, de se tornar mundial. Já tem qualidade para isso, não temos que pedir permissão para ninguém", defende.

Em outras palavras, está na hora do Brasil acreditar no seu axé – seja com x ou com sh.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais