Tecnologias encantadas

Crédito: Fast Company Brasil

Silvana Bahia 4 minutos de leitura

Eu sou uma mulher de axé. Acredito no poder dos orixás e da natureza. Experimento o mundo a partir de gramáticas diversas, dos vários modos de viver, fazer e pensar das múltiplas presenças e culturas que há no mundo. A sabedoria elaborada nos terreiros das religiões de matriz africana é uma ciência encantada, como dizem Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino.

É essa a ciência que me interessa. Esse modo de pensar o mundo a partir das possibilidades que surgem nas brechas e nos vazios deixados pela ciência ocidental e pela violência colonial. O que me toca são as práticas, as invenções, os experimentos e as soluções (aconselhamentos/ ebós) que emergem dessa ciência encantada. Afinal, também sou uma mulher das tecnologias.

Umas das tecnologias encantadas que me guia é o Ifá – um oráculo, um sistema de consulta através do qual fala Orunmilá, a divindade iorubá do destino, do saber, da ciência, do conhecimento teórico e prático.

Orunmilá se comunica através do jogo do opelé e/ ou Ikins que apresentam combinações binárias, oriundas dos fundamentos da análise combinatória – o ramo da matemática que permite enumerar as combinações com que se formam os elementos de um conjunto.

No terreiro de candomblé que também acolhe laboratórios de informática, jovens vêm desenvolvendo o game Contos de Ifá.

Esse ramo se desenvolveu no ocidente como ciência da computação, onde é possível contar, computar, executar, instrução após instrução, os programas contidos na memória do computador. Esses programas são informações codificadas segundo uma representação binária.

No Ifá, eles são representados pelos itãs, e as instruções são os odus ou signos. A cada odu que aparece, o sistema localiza os itãs correspondentes. Eles apresentam a solução recomendada para o problema diagnosticado na consulta.

Nei Lopes conta a ancestral e divina história do Ifá em seu livro "Ifá Lucumí", de onde também tiro esses ensinamentos. Ele diz: "no Ifá está a tecnologia, criando e fazendo uso de um conjunto de regras destinadas à comunicação com o sagrado, para assim resolver os problemas da vida das pessoas e das comunidades."

O jogo de Ifá, com sua tecnologia ancestral, matemática, sagrada, também inspirou a criação de um game. Mãe Beth de Oxum, sacerdotisa do axé, da cultura e do amor, é a criadora do projeto Lab Coco, que reúne jovens há quase 20 anos em Guadalupe, na periferia de Olinda.

É lá, no terreiro de candomblé que também acolhe laboratórios de informática, que jovens vêm desenvolvendo o game Contos de Ifá. Na aventura, os orixás são personagens que precisam passar por desafios bem conhecidos de quem vive o cotidiano das periferias brasileiras.

O projeto surgiu como forma de mitigar os efeitos violentos do racismo religioso e da possibilidade de pensar e criar tecnologias a partir da inventividade dos jovens da comunidade. Mãe Beth, com quem já compartilhei momentos inesquecíveis de muita sabedoria, acredita que as tecnologias devem melhorar nossa vida e não nos oprimir ainda mais.

O Centro Cultural Coco de Umbigada reúne outras ações, como uma rádio comunitária, um cineclube e um ponto de cultura cujas atividades estão voltadas para a manutenção do Coco como patrimônio do povo da diáspora.

Contos de Ifá é um jogo lindo, que amarra saberes diversos e encaminha valores, capacidades técnicas, narrativas e estéticas de uma comunidade marcada pela luta e pela criatividade em suas diversas manifestações.

No último dia 21 de março celebramos o Dia Internacional contra a Discriminação Racial. Projetos como Contos de Ifá são, certamente, uma conquista coletiva pela emancipação do povo negro do Brasil.

Mãe Beth abriu caminhos para que uma nova geração aflorasse. Recentemente, conheci um jovem artista e pesquisador chamado Calixto que promete lançar, em 2024, mais um game baseado na sabedoria ancestral das religiões de matriz africana: o jogo Odu: Conexões Ancestrais.

Calixto se juntou a um grupo de jovens negros, desenvolvedores de games, artistas, designers e programadores para contar histórias de divindades, reis e rainhas africanas, cujas características são habilmente incorporadas para criar mecânicas de jogo onde o conhecimento ancestral se torna uma ferramenta poderosa.

Conversei com Calixto e estou aguardando ansiosa pelo lançamento do jogo e dos outros produtos que o Odu Studios promete lançar. Ele me disse que "o projeto busca desenvolver um jogo inovador que irá abrir caminhos na indústria, se tornar uma referência para inclusão de grupos vulneráveis socialmente no setor de desenvolvimento de jogos e promover e difundir a história e a cultura afro-brasileira e africana de forma gratuita através da mídia dos jogos eletrônicos."

Compartilho com Calixto e sua turma, com Mãe Beth e seu terreiro, o encantamento que produz inovação, que recombina códigos, que promove a amarração necessária para pensar o futuro das tecnologias e da nossa sociedade.

Celebro as IAs – inteligências ancestrais – e invoco mais uma vez Luiz Antonio Simas. Para ele, o ponto está riscado: "há que se ler a poética para se entender a política, há que se ler o encanto para se entender a ciência."


SOBRE A AUTORA

Sil Bahia é uma profissional nas áreas de tecnologia, inovação e inclusão social. Como codiretora executiva do Olabi e coordenadora do... saiba mais