Rio Grande do Sul foi invadido pela realidade climática. De novo

Não falta tecnologia para mitigar os riscos de novas tragédias. Mas o poder público precisa acreditar na ciência

Créditos: Divulgação/Agência Brasil

Camila de Lira 5 minutos de leitura

Cidades inteiras destruídas, bairros debaixo d'água, lama por todos os lados e o que é irreparável: dezenas de vidas perdidas. As enchentes causadas por fortes chuvas transformaram o Rio Grande do Sul em um cenário de guerra.

Uma guerra prevista, anunciada e analisada por cientistas e ativistas, porém ignorada pelo poder público: a guerra contra a mudança climática.

A dimensão do que aconteceu no Rio Grande do Sul é espantosa. Em menos de três dias de chuvas, os rios Taquari, Caí, Pardo, Gravataí e Sinos subiram, elevando as águas do Guaíba (que corta a capital gaúcha) acima de cinco metros.

Se a sensação, para os cientistas, é de tragédia anunciada, para quem está no local o sentimento é de terra arrasada.

"Fomos invadidos pela realidade climática e a invasão destruiu o estado", diz Rodrigo Corradi, secretário-executivo adjunto do ICLEI - Governos Locais pela Sustentabilidade, principal associação mundial de governos locais dedicados ao desenvolvimento sustentável. O ICLEI está presente em mais de 130 países e tem mais de 2,5 mil cidades associadas.

Crédito: Agência Brasil/Divulgação

Gaúcho, Corradi lidera ações com mais de 100 prefeituras pelo Brasil para coordenar ações de planejamento urbano sustentável. Para ele, o método reativo das Defesas Civis no Brasil precisa ser alterado.

"A Defesa Civil precisa estar dentro do contexto da resiliência urbana, num papel mais estratégico, pensando nos riscos que a cidade corre. Não pode ser só um órgão atingido no momento crítico", diz Corradi.

Nesse ponto, a tecnologia pode apoiar a ação reativa e mais eficiente dos trabalhos de adaptação climática. Plataformas que utilizam inteligência artificial podem fazer a previsão de desastres e ajudar na análise em tempo real dos dados, como é o caso do sistema criado pela startup brasileira Sipremo.

A tecnologia cruza dados de diferentes condições climáticas, de níveis de avanço urbano e de indicadores demográficos e cria um sistema que apoia a construção de resiliência proativa das cidades.

O CEO da startup, Gabriel Savio, frisa que soluções de medição e acompanhamento de desastres naturais podem dar tempo para a defesa civil e as prefeituras agirem.

O Marco Legal das Startups permite ao poder público contratar startups em caráter experimental, sem precisar de edital específico.

Outras startups brasileiras conectam a IA para aprimorar a previsão meteorológica como a MeteoIA. Já a Wiiglo gera análises de comportamento da cidade, que permitem a visualização de vários pontos de dados sobre o espaço em um único lugar. Além disso, altera os indicadores de risco de acordo com o momento, o que apoia uma ação mais precisa da Defesa Civil em casos extremos.

Savio lembra que para tais ferramentas melhorarem o sistema de previsão, elas precisam ser usadas. Mesmo assim, ele ainda tem dificuldade na hora de apresentar o sistema às prefeituras.

"Nem todos os gestores públicos sabem do Marco Legal das Startups, por exemplo, que facilita as contratações de novas tecnologias", diz o CEO da Sipremo.

Editada em 2021, a Lei Complementar nº 182, chamada de Marco Legal das Startups, cria uma nova modalidade de licitação para contratação de startups pelo poder público.

Por meio do Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), governos municipais, estaduais e federal podem contratar soluções experimentais de startups para testar por até 12 meses, com possibilidade de prorrogar o contrato por mais 12. A contratação pode ser feita sem precisar de edital específico, agilizando o processo.

TRAGÉDIA ANUNCIADA

O cenário de destruição no Rio Grande do Sul não pegou os cientistas de surpresa. Modelos preditivos do clima já indicavam a incidência de chuvas fora do comum para a região. As Defesas Civis estadual e federal foram avisadas com mais de uma semana de antecedência.

Um relatório de análise de vulnerabilidades e riscos do plano de ação climática de Porto Alegre, publicado este ano, chegou a desenhar no mapa as áreas que poderiam sofrer inundação fluvial.

Fonte: Portal H2Hoje/ Fast Company Brasil

"A saída será via ciência. Acreditar na ciência já resolve parte do problema. Se continuar negando, vai ficar difícil", diz o especialista responsável pelo documento, Sérgio Margulis.

Margulis é pesquisador associado do Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS) e do Instituto Clima e Sociedade. Formado em matemática, o especialista foi economista do meio ambiente do Banco Mundial por 22 anos, onde coordenou os primeiros estudos sobre economia da adaptação às mudanças do clima da organização.

Para ele, as enchentes no Rio Grande do Sul escancaram o tamanho do descaso e da falta de prioridade que as autoridades brasileiras deram ao tema da mudança climática nos últimos anos.

O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) documentou no ano passado um total de 1.161 eventos, principalmente inundações e deslizamentos de terra – um número sem precedentes desde o início dos registros, em 2011. Em 2023, foram 132 mortos e mais de 74 mil afetados diretamente pelas chuvas excessivas.

"Esses eventos não têm mais volta, vão acontecer com frequência. Há necessidade muito grande de democracias se preparem para a mudança climática", diz Carlos Nobre, climatologista e um dos principais cientistas brasileiros da atualidade.

MEDIDAS URGENTES

Dados do Centro Brasil no Clima (CBC) indicam que apenas 30 municípios têm planos atualizados de adaptação climática. De acordo com Nobre, o baixo orçamento dos estados para a adaptação climática mostra que o assunto não era tratado com a urgência que deveria.

No Rio Grande do Sul, especificamente, 0,2% do orçamento de 2024 foi reservado para enfrentar eventos climáticos. Mesmo com números indicando que a quantidade de mortos por conta de desastres naturais no estado foi 10 vezes maior nos últimos 11 meses do que nos últimos 19 anos.

Plataformas que utilizam IA podem fazer a previsão de desastres e ajudar na análise em tempo real dos dados.

Outro fator que precisa ser alterado urgentemente é o sistema de avisos para a população. Nobre lembra que a Defesa Civil do Rio Grande do Sul chegou a acionar os seus protocolos para avisar a população, mas de maneira errada.

De acordo com reportagem da plataforma gaúcha Matinal, algumas notificações foram feitas quando a água já subia em Porto Alegre. A comunicação da Defesa Civil da cidade dava informações erradas de pontos seguros, como explicou a Agência Pública.

A mudança voltada para a adaptação climática é algo que precisa acontecer nas cidades brasileiras. "Algumas agendas só avançam com tragédias, infelizmente", diz Margulis.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais