Ainda raras, mulheres founders de startups inspiram setor

Crédito: Fast Company Brasil

Isabella Lessa 11 minutos de leitura

De acordo com a Distrito, 2020 foi recorde em rodadas de investimentos para startups brasileiras. Ao todo, foram R$, 3,5 bilhões investidos em empresas como Loft e Vtex (ambas viraram unicórnios no ano passado). Expandindo para a América Latina, as startups receberam US$ 4,4 bilhões nos últimos 12 meses. No entanto, dados da Crunchbase enviados à publicação Labs mostram quase nada desse montante chegou às mãos de startups fundadas por mulheres – em 2019, negócios de mulheres na região levantaram R$ 14 milhões. Já startups fundadas por mulheres e homens angariaram US$ 612 milhões em 2020 ante US$ 748 milhões em 2019. Já as empresas fundadas por homens tiveram ligeira alta na região, passando de US$ 3,80 bilhões no ano retrasado para US$ 3,83 bilhões em 2020.

Globalmente, mais de 800 startups comandadas por mulheres receberam US$ 4,9 bilhões em investimentos em 2020, um recuo de 27% em relação a 2019, segundo a Crunchbase. No entanto, quando consideradas as empresas fundadas somente por mulheres, esse índice cai para 2,3% ante 2,8% no ano anterior.

Ainda segundo a Distrito, no levantamento Corrida dos Unicórnios 2020, é zero o número de mulheres aspirantes a founders. Dos 30 fundadores de startups que se tornaram unicórnios, há apenas duas mulheres: Cristina Junqueira, do Nubank e Mariana Paixão, da Loft. Além do fator socioeconômico – a pesquisa aponta que 13 dos founders de unicórnios são formados pela USP e 12 estudaram em instituições como Stanford, Harvard, FGV e Insead –, a desproporção histórica entre homens e mulheres na indústria de tecnologia também reflete na desigualdade de gênero no mercado de startups. A Abstartups (Associação Brasileira de Startups) aponta que 85% dessas operações são iniciadas por homens brancos de classe média. Nohoa Arcanjo, cofundadora e growth leader da Creators.llc, HRtech que conecta profissionais da indústria criativa a empresas, afirma que 2020 foi um ano especialmente difícil para as mulheres, por conta da jornada dupla que acabou, nas palavras dela, se transformando em uma jornada infinita. No mercado de startups, as mulheres receberam menos investimento do que vinham capitando anteriormente — essa queda foi vista tanto no número de acordos quanto no valor investido.

“Mulheres empreendedoras passaram por uma exaustão que acabou afetando a capacidade de entrega no trabalho, já que os filhos estavam em casa, com aulas online, além de toda a estrutura da casa para lidar. Acredito que, nessa situação, o mercado passou a ser mais conservador em relação a investimentos em startups lideradas por mulheres, e as próprias mulheres tiveram dificuldade para olhar para investimentos e sair para captar, pois diante de tantas responsabilidades esta tarefa complexa ficou em segundo plano”, afirma. Ela ressalta, no entanto, que no ano passado negócios liderados ou coliderados por mulheres receberam aportes: Amyi (duas founders, R$ 1 milhão), Linker (três founders, sendo uma mulher, R$ 8 milhões) e Hrestart  (um homem e uma mulher founders, valor não revelado).

Na visão de Paula Morais, cofundadora da Intera, HRtech de recrutamento digital, um terceiro aspecto que dificulta a participação do público feminino é a falta de uma cultura empreendedora sólida no Brasil. Para ela, ainda que este cenário esteja em plena transformação, ainda há quem encare o risco e o erro, características inerentes à trajetória do empreendedor, como algo negativo. “Estudei em uma universidade pública no Nordeste e eu era uma das únicas que queria empreender. Nossos pais batem nas nossas costas quando conseguimos passar em concurso público ou vaga em multinacional. Mas, de dez anos para cá, essa cultura do empreendedor tem se tornado mais forte”, afirma ela, que se formou em Administração na Universidade Federal da Bahia.

Já Paula Crespi e Flavia Deutsch Gotfryd, fundadoras da femtech Theia, clínica de saúde que combina consultas virtuais e presenciais para o cuidado das mulheres gestantes, se conheceram durante um MBA em Stanford há quase uma década – ambas se formaram na universidade norte-americana em 2013. Elas se recordam de que, naquele ano, o universo nacional de startups era muito diferente e founders de algumas das empresas mais proeminentes de hoje, como David Vélez, do Nubank, e Gabriel Braga, do Quinto Andar, eram colegas de classe. “O que acontecia é que os homens voltavam para o Brasil para empreender e as mulheres tornavam-se braços direitos deles”, conta Flavia. Ela já tinha ido à Stanford com a ideia de empreender, mas preferiu ganhar experiência para poder lançar um plano de negócios. Já Paula acredita que a falta de referência e acesso são os principais entraves para mulheres nesse campo. Ambas trabalharam em startups antes de fundarem a Theia: Paula foi diretora de marketing e produto da Guia Bolso e Flavia trabalhou como diretora de produto, marketing e vendas da Acesso Card. Nas respectivas empresas, elas ganharam mais intimidade com os negócios e com redes de investidores – a dupla reconhece que esses são ambientes ainda restritos, mais fácil de serem acessados por profissionais com currículos similares aos delas.

TRANFORMANDO O ECOSSISTEMA

Essa realidade do “clube de bolinha” dos fund raisings foi vivenciada na pele por Paula Morais, da Intera. Em dezembro do ano passado, a empresa recebeu aporte do tipo seed de R$ 2,5 milhões na primeira rodada que a empreendedora fez junto com o sócio, cofundador e CEO Augusto Frazão. Em rodadas anteriores, sozinha, Paula não conseguiu fechar investimentos. “Conversei com vários fundos e fui dispensada por todos. Tem vários motivos que podem explicar isso, como o momento da empresa, entre outros. Mas mesmo quando estou eu e meu sócio em uma reunião e apresento o pitch, a pessoa do outro lado da mesa faz uma pergunta olhando para ele, não para mim. Existem vieses inconscientes pela nossa herança histórica, pela falta de mulheres liderando empresas”, comenta.

Cristina Junqueira, cofundadora do Nubank, ressalta que, em geral as mulheres são muito bem preparadas e têm vontade, mas o problema é sistêmico. A solução, portanto, é enfatizar a diversidade nas empresas como um todo. Hoje, o Nubank tem 42% de mulheres em todas as áreas e níveis de senioridade e operação na Colômbia é comandada por uma mulher.  “Uma parte disso tem muito a ver com o fato de que eu estava na liderança desde o começo. É um ciclo virtuoso: com mais mulheres na liderança, consequentemente teremos empresas com mais diversidade e por aí vai até chegar o momento em que, como sociedade, seremos mais igualitários”, diz. Com sete meses de gestação da primeira filha, a executiva voou para os Estados Unidos com seus sócios para fazer o pitch da primeira rodada de investimentos do Nubank. “Imagino que tenha sido um fato inédito para os investidores ver uma grávida fazendo um pitch. Mas eles perceberam em mim, no mínimo, uma pessoa que estava muito a fim de fazer essa empresa dar certo. Eu creio que estamos no caminho para tornar naturais cenas como essa, de mulheres — grávidas ou não — fazendo pitches, recebendo investimentos e construindo empresas bem sucedidas”. No final de janeiro, o banco digital captou US$ 400 milhões em uma rodada de investimentos da série G, liderada por investidores globais como GIC, Whale Rock e Invesco. Com o aporte, a operação passou a figurar como a nona startup mais valiosa do mundo, de acordo com dados da Statista.

Na Theia, Flavia e Paula fazem movimentos para aumentar a participação de mulheres no mercado de startups. Hoje, o time da femtech é majoritariamente feminino, inclusive a parte de tecnologia. E, quando buscam investidores anjos, recorrem tanto a mulheres quanto a homens. Em atividades há um ano e meio, a operação recebeu investimento de R$ 7 milhões da Kaszek Ventures (que também investiu em negócios como Gympass, Nubank, Loggi e Quinto Andar) e pela Maya Capital, fundo comandado por Lara Lemann e Mônica Saggioro.

O conselho de Paula para mulheres aspirantes a empreendedoras é que busquem mulheres que já façam parte de suas jornadas. Flavia complementa: “Se cerque pelas melhores mulheres que você conhece. Dá para aprender muito com outras pessoas. O que faz a diferença não é necessariamente o melhor software, mas as melhores pessoas”. Para Paula Morais, da Intera, empreender exige uma boa dose de resiliência, mas que o maior risco é não arriscar. “O medo de dar errado não existe, o que existe é medo de encontrar uma saída. É questão de encontrar uma saída. Se a aventura do empreendedorismo der errado, as empresas estão procurando isso: uma trajetória interessante, de quem resolveu testar”.

É evidente que a falta de diversidade no universo de empreendedores e investidores não se limita somente ao número ínfimo de mulheres e ao fator socioeconômico, mas também à pouca representatividade do público LGBTQI+ e de negros. Abrir as portas para empreendedores pretos é, justamente, a razão de ser da BlackRocks, fundada por Maitê Lourenço, cujo objetivo é acelerar e capacitar e investir em projetos de tecnologia realizados pela população negra. Em 2020, a empresa criou, em parceria com BTG Pactual e o TikTok, o Grow Startups, programa de aceleração que selecionou 10 de 160 startups.

Outras mulheres que já superaram estes desafios criaram soluções para ajudar outras mulheres a terem sucesso em suas jornadas, como a Wish, hub de investimentos que conecta startups lideradas por mulheres a investidores em busca de retorno financeiro aliado à transformação socioeconômica coletiva, exemplifica Nohoa. “O Google for Startups também busca incluir startups lideradas por mulheres nos programas de mentoria oferecidos por eles, e, além disso, há uma busca por desenvolvimento e inclusão de líderes negras e negros promovida pela Preta Lab e pela própria Black Rocks”.

THEIA: PROBLEMAS GLOBAIS, SOLUÇÕES LOCAIS

Flavia Deutsch Gotfryd e Paula Crespi, fundadoras da femtech Theia, que recebeu investimentos de R$ 7 milhões da Kaszek Ventures em 2019 (Crédito: Divulgação)

Particularmente interessadas pelo universo da saúde, Flavia e Paula, que também são mães, sentiam falta de um serviço eficiente capaz de acompanhar as mulheres antes, durante e depois da gestação. Inspiradas pela telemedicina, que até então não era regulamentada no Brasil, reuniram um time multidisciplinar, formado por médicos e profissionais com mais de dez especialidades (nutricionista, doula, psicóloga, entre outras), com o intuito de oferecer um serviço holístico e mais humano para as grávidas.

“A saúde enfrenta problemas universais, foi feita por homens para homens. Mas a forma como a saúde é tratada em cada país é diferente. Então buscamos uma solução local para um problema global. A jornada da maternidade nunca é tranquila, é solitária independentemente da configuração familiar. Queremos redefinir essa jornada e colocar a mulher como protagonista”, explica Flavia.

O Brasil é o segundo país que mais realiza cesáreas no mundo – 55% dos partos são cesarianas e, sem considerar o SUS (Sistema Único de Saúde), esse número vai para 86%. Isso não significa, pontua Flavia, que a cesárea seja vilã, pois é um dos recursos para reduzir a mortalidade materno-fetal. “A OMS (Organização Mundial da Saúde recomenda um índice de 10 a 15% de cesáreas por motivos médicos. Mas vemos essa proporção nos partos normais e isso vem de como o sistema é construído”. Essa realidade é impactada pelo acesso que a mulher tem à informação e do alinhamento do médico aos valores e objetivos do sistema. “A exceção é o caso da mulher que tem seu direito de escolha respeitado”.

INTERA: RECRUTAMENTO HACKER PARA ALÉM DO EIXO RIO-SP

Paula Morais, cofundadora da HRtech Intera, ao centro, com os sócios Augusto Frazão, à esquerda, e Juliano Tebinka, à direita: aporte de R$ 2,5 milhões em dezembro de 2020 (Crédito: Divulgação)

A Intera trabalha com uma solução de contratação que busca preencher a alta demanda de vagas abertas em grandes empresas com profissionais qualificados. Em 2012, enquanto cursava Direito e trabalhava em uma agência de e-commerce, Paula Morais começou a entender sobre lógica de conversão e back end e decidiu abandonar as leis para estudar Administração.

Depois de alguns empreendimentos como marketplace de aluguel e consultoria de e-commerce, ela percebeu que havia dificuldades técnicas e culturais para contratar pessoas para a área de tecnologia. Antes da Intera, lançou a Weber School em Salvador, escola que formava profissionais para trabalhar em negócios em ascensão. O negócio, porém, não se sustentou financeiramente. “Não conseguia fechar turmas. Se formar para o mercado digital não é uma necessidade latente para as pessoas. Apenas 21% dos brasileiros fazem ensino superior, quiçá fazer especialização em digital. Não sabia nada sobre venture capital e pensei: e se eu jogar essa conta para a empresa?”. Foi então que nasceu a Intera, que inicialmente recrutava pessoas para participar, de forma gratuita, de programas de capacitação financiados por empresas que, ao final, contratavam alguns alunos.

Conversando com RHs e percebendo que essa é uma área desassistida de recursos de tecnologia, ela vislumbrou a solução certa: em 2019 lançou o produto de recrutamento digital focado em funções de tecnologia (dados, produtos e design). Hoje, a operação utiliza uma série de ferramentas online para atrair e colocar os talentos certos nos processos seletivos das organizações (a empresa fica a cargo da contratação). A ideia é que otimizar o tempo dos clientes ajudando-os a ter acesso aos candidatos mais adequados às suas necessidades.

Em 2020, a Intera, que também tem Augusto Frazão e Juliano Tebinka (ex-vice-presidente de engenharia do MadeiraMadeira) como sócios e cofundadores, cresceu um crescimento de 200% em relação a 2019, e, até o momento, superaram R$4 milhões em faturamento. A previsão para 2021 é dobrar a receita e crescer 150% até o fim do ano e projetam a série A final de 2021/2022. Entre os clientes da empresa estão iFood, Ambev, Itaú, Creditas, Quinto Andar, Ebanx, Grupo Boticário e Totvs.


SOBRE O(A) AUTOR(A)