A Maré é uma mulher empreendedora

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Pâmela Carvalho 7 minutos de leitura

Imagine uma imensa favela composta por 16 partes. Cada uma destas partes tem uma história. Uma data de fundação específica, uma – ou várias – narrativa, um ritmo e uma espacialidade diferente. Nela, moram cerca de 140 mil pessoas, que consomem a favela, a “pista”, e produzem saberes, recursos financeiros e soluções para a cidade.

Assim é a Maré. Um conjunto de favelas, ou uma favela com 16 favelas dentro, situada no coração do Rio de Janeiro, tendo em suas margens as principais vias expressas da cidade: Linha Amarela, Linha Vermelha e Avenida Brasil.

Para entendermos melhor este território, o Censo Maré, realizado pela organização Redes da Maré em parceria com o Observatório de Favelas, contribui com dados. A maior parte dos moradores (62,1%) se declara como negro (pretos ou pardos, segundo categorização do IBGE).

Mais da metade da população mareense é composta por jovens: 51,9% dos moradores têm menos de 30 anos. Já a população com 60 anos ou mais totaliza apenas 7,4%. Na Maré, há mais mulheres do que homens. Dentre os residentes, 70.878 são mulheres (51%) e 67.948 são homens (48,9%). Dos responsáveis pelos domicílios, 44,4% são mulheres acima de 15 anos.

Localidades que compõem a Maré (Crédito: Redes da Maré)

A despeito dos estereótipos acerca das favelas, a Maré faz girar uma economia pulsante que ajuda a alimentar a região e impulsiona negócios que geram capital financeiro e cultural – injetado, inclusive, em locais geograficamente distantes.

Em 2014, dentro do escopo do Censo Maré, as instituições organizadoras fizeram um grande levantamento a fim de discutir e gerar dados sobre o perfil dos negócios na Maré: o Censo de Empreendimentos Maré.

Foram coletados dados em 2.953 estabelecimentos. Entre eles, dois terços são do ramo do comércio, 33% são da área de serviços e apenas 1% é voltado para a indústria. No conjunto de favelas, as principais atividades são bares (22,4%) e salões de beleza (10,4%), seguidos por comércios de roupas (10,4%), mercados (4,7%) e lanchonetes (4,4%).

A despeito dos estereótipos acerca das favelas, a Maré faz girar uma economia pulsante que ajuda a alimentar a região.

Estima-se que a quantidade de negócios tenha aumentado expressivamente nos últimos nove anos. Os empreendimentos da Maré empregam cerca de 9,3 mil pessoas.

A pesquisa demonstra que 60% dos negócios na Maré têm homens como principais gerenciadores. Porém, a vivência no território sinaliza que as mulheres têm papel fundamental na economia e, muitas vezes, são invisibilizadas.

As mulheres da Maré são consumidoras, chefes de família e chefes de negócios, além de responsáveis pela criação de uma série de soluções e produtos que hoje circulam pela favela e pela cidade. Assim, apresentaremos a história de três empreendedoras que, a partir de seus negócios, nos ajudam a entender os sentidos de favela e de empreendedorismo.

ELIANA SOUSA SILVA

Eliana Sousa Silva nasceu na região do Cariri, na Paraíba. Em um contexto de seca severa, migrou ainda criança com a família para o Rio de Janeiro. Em 1969, fincou raízes em Nova Holanda, uma das favelas da Maré.

A luta por direitos básicos se impôs desde a infância, o que resultou numa adolescência aguerrida e engajada. Com 17 anos, tornou-se agente comunitária no escopo de uma pesquisa de sanitaristas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

No início de sua fase adulta, liderou um dos movimentos históricos com relação aos direitos e protagonismo das mulheres na Maré: a Chapa Rosa. Nesse contexto, foi eleita presidente da Associação de Moradores de Nova Holanda. No processo político, direitos como energia elétrica, coleta de lixo e rede de água e esgoto foram implementados.

Eliana Sousa Silva (Crédito: Douglas Lopes)

A constatação de que, em 1997, apenas 0,5% dos moradores da Maré tinham acessado o ensino superior motivou Eliana junto, a outros moradores, a criar um curso pré-vestibular comunitário.

Em 2007, ocorreu a formalização da instituição Redes da Maré, da qual Eliana é fundadora e diretora. A organização tem como objetivo tecer e fortalecer as redes necessárias para a efetivação dos direitos dos moradores do Conjunto de Favelas da Maré.

Eliana é doutora em serviço social e mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), graduada em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora honoris causa pela Queen Mary University of London.

A trajetória, marcada pela educação e pela luta coletiva, faz de Eliana uma referência no empreendedorismo de impacto social, tendo como propósito de trabalho e de vida a garantia de direitos.

LORA BRONZE

Em 2017, a “internet parou” para assistir e comentar o biquíni de fita isolante usado por Anitta no clipe de “Vai Malandra”. A produção ajudou a alavancar o procedimento de bronzeamento com biquíni de fita. Porém, na data de lançamento, já havia uma série de empreendedoras especializadas na técnica. Uma delas é Lora Bronze.

Anitta no clipe de “Vai Malandra” (Crédito: Reprodução/ Instagram)

Joelma da Silva viu o Piscinão de Ramos nascer enquanto espaço de lazer, cultura e esporte há 22 anos. Na amálgama da geografia carioca, há quem não saiba que o Piscinão é uma das 16 favelas que formam o Conjunto de Favelas da Maré. Joelma é uma das que sabe e bate no peito afirmando essa identidade.

Ao ver o espaço se desenvolver, a empreendedora reconheceu ali uma chance de alcançar autonomia financeira e se lançou no mercado da estética, abrindo a Barraca da Lora, logo na entrada do Parque Ambiental da Praia de Ramos Carlos de Oliveira Dicró, popularmente conhecido como Piscinão de Ramos.

Montagem de biquíni, bronzeamento, venda de bebidas e petiscos, aluguel de cadeiras e barracas e acolhimento são alguns dos serviços oferecidos por Joelma, que quase não atende mais pelo nome de batismo, uma vez que ficou conhecida na região por seu nome profissional: Lora.

Lora Bronze no Piscinão de Ramos (Crédito: Reprodução/ Instagram)

A empreendedora expandiu seus negócios e recentemente inaugurou uma laje, com bronzeamento natural (no sol) e no “paredão”, procedimento feito com luzes que liberam UV e que estimulam a produção de vitamina D e colágeno.

Atualmente, ela emprega cerca de 10 pessoas e tem a acessibilidade e a diversidade (para todos os corpos, gêneros, raças e classes sociais) como leme de seu negócio.

BIANCA ANDRADE

Boca Rosa é o nome de um negócio surgido numa casa humilde na rua Brasília, no Parque União, favela da Maré. Hoje, Boca Rosa – Company – é a holding responsável pelas produções artísticas e empresariais de uma das maiores influenciadoras e empresárias do Brasil e das marcas Boca Rosa Beauty e Boca Rosa Hair.

Boca Rosa é também o pseudônimo da jovem mulher que construiu esta trajetória: Bianca Andrade.

Bianca Andrade (Crédito: Reprodução/ YouTube)

Na adolescência, Bianca conciliava o trabalho no buffet da mãe – onde exercia funções que iam desde montadora de mesa de frios a garçonete – com a paixão pela maquiagem. Assim, formou-se maquiadora.

Além da qualidade técnica de seu trabalho, ela passou a ser reconhecida por usar um batom rosa muito popular e desejado na época. Surge então a Boca Rosa.

Com o objetivo de tornar acessível o nicho de maquiagem e beleza, Bianca gravava vídeos para o YouTube e criava conteúdos para um blog onde dava dicas de “produtos baratinhos” e compartilhava diversos tutoriais de maquiagem, além de narrar seu dia a dia. Isso num período em que os smartphones eram ainda menos acessíveis e o uso pleno da internet em favelas era ainda mais difícil.

Para usar a internet e “subir” os vídeos, era necessário muita gambiarra. As mesmas “gambiarras” que a empresária ensinava ao misturar bases diferentes para chegar no tom correto para cada pele ou os improvisos para garantir uma boa iluminação para os vídeos.

são as mulheres que carregam o empreendedorismo brasileiro e precisam ser reconhecidas por isso.

Essa capacidade de desenrolar mesmo diante das adversidades e criar tecnologias – característica dos “crias” – levou Bianca a propor soluções para uma demanda no mercado nacional de maquiagem e se tornar referência na área, liderando estudos de caso sobre estratégias de marketing, comunicação e gestão de negócios.

Para concluir, trago uma informação que pode parecer irrelevante, mas que carrega imensa carga simbólica. O último sobrenome de Bianca Andrade é Silva. Assim como o de Eliana e o de Joelma. Silva é o sobrenome mais popular no Brasil. Também é um sobrenome extremamente comum na Maré e em várias outras favelas.

Estas três Silvas revelam uma série de desafios e soluções vividos e apresentados por empreendedoras faveladas. Seja no empreendedorismo de impacto social, na estética ou na produção de conteúdos, a Maré é uma mulher empreendedora.

As trajetórias de Eliana, Joelma e Bianca lançam luz sobre uma realidade urgente: são as mulheres que carregam o empreendedorismo brasileiro e precisam ser reconhecidas por isso. Parodiando, com muito respeito, a composição “Rap do Silva”, do MC Bob Rum: “somos – e seremos – muitas Silvas, que a estrela brilha”.


SOBRE A AUTORA

Pamela Carvalho é gestora de negócios de impacto social e coordenadora na Redes da Maré. Pâmela Carvalho é historiadora, educadora, co... saiba mais