Das quitandas às favelas – empreendedorismos que emergem das margens


Pâmela Carvalho 3 minutos de leitura

No século 19 no Rio de Janeiro, as quitandeiras desempenhavam um papel fundamental na vida cotidiana da cidade. Eram mulheres negras, muitas em situação de escravizadas, que se dedicavam a vender suas iguarias nas ruas movimentadas do Rio.

Além de serem responsáveis por alimentar parte da população, as quitandeiras também se tornaram importantes pontes de informação e comunicação. Eram conhecedoras e participantes de acontecimentos políticos e sociais, transmitindo e recebendo notícias e informações enquanto serviam seus clientes.

Muitas vezes, suas barracas se tornavam ponto de encontro, onde as pessoas se reuniam para trocar ideias e discutir os assuntos do momento. Assim, as quitandeiras também desempenharam um papel significativo na disseminação da cultura e nas transformações políticas da época.

Essas mulheres, além de agentes políticos essenciais na conquista de direitos no Brasil escravista, podem ser lidas como pioneiras no empreendedorismo.

Quitandeiras vendedoras de angu, de Jean Baptiste Debret (1826)

De forma geral, o empreendedorismo é reconhecido como um processo de implementação de novos negócios ou mudanças em empresas, instituições ou negócios. Envolve também a criação de empresas, produtos e ações novas, que englobam riscos, desafios e inovações. Além disso, o empreendedor costuma ser aquele que busca soluções para um problema.

As quitandeiras, ou “negras de tabuleiro”, comercializavam produtos alimentícios de forma itinerante nas regiões centrais da cidade. Essas mulheres de origem africana vendiam principalmente alimentos produzidos localmente, como bebidas destiladas, leite, bolos, broas, biscoitos e tabaco, colocando em prática as bases do que hoje entendemos por empreendedorismo.

Além de agentes políticos essenciais na conquista de direitos no Brasil escravista, as quitandeiras podem ser lidas como pioneiras no empreendedorismo.

Assim, solucionavam duas grandes questões: a demanda por gêneros alimentícios nos centros urbanos, que crescia, e o segundo e mais relevante ponto, que diz respeito à conquista de liberdade física e simbólica para pessoas negras. O recurso obtido nas quitandas servia para comprar a alforria das próprias vendedoras e de pessoas próximas.

Além disso, elas faziam sua voz ecoar e realizavam processos de incidência política de acordo com seus desejos e necessidades. Influenciavam tomadores de decisão e figuras públicas, “adoçando a boca” de muitos.

E é essa perspectiva de liberdade que conecta as quitandeiras do Brasil colônia às empreendedoras das favelas e periferias contemporâneas. Pesquisa do Instituto Rede Mulher Empreendedora apontou que, em 2022, a maior parte das empreendedoras brasileiras são mães, negras e estão na faixa etária entre 35 e 40 anos.

Com relação ao grau de escolaridade, o ensino médio é o mais alcançado. No que diz respeito à moradia, 38% das empreendedoras vivem em regiões periféricas. A pesquisa também aponta que 55% dos empreendimentos são da área de vendas em geral e 32%, relativos à prestação de serviços.

Assim como as quitandeiras, os empreendedores das favelas buscam soluções locais e contribuem para a discussão de questões globais.

Nas favelas, o empreendedorismo sempre existiu: o dono do pequeno armazém, do boteco, a fruteira, o barbeiro, o engraxate, a vendedora de porta em porta e a cuidadora de crianças sempre foram empreendedores. Assim como as quitandeiras, buscam soluções locais e contribuem para a discussão de questões globais.

Direitos urbanos, acesso à capital, saneamento básico, educação, equidade de raça e gênero são algumas das pautas levantadas transversalmente por estes empreendedores e empreendedoras de favela. Assim como as quitandeiras, muitos não se veem no protagonismo dessa discussão.

Historicamente, foram colocadas no centro das discussões pessoas brancas, homens e com acúmulo de capital. E nas margens, pessoas negras, mulheres e pessoas pobres. Esse processo foi construído politicamente e hoje propomos essa inversão simbólica e intelectual.

Aqui, abrimos alas para esse caminho. Para o reconhecimento e debate acerca das produções de soluções e epistemologias que emergem de favelas. Das quitandas coloniais às favelas contemporâneas, que se façam ouvir os empreendedorismos que vêm das margens.


SOBRE A AUTORA

Pamela Carvalho é gestora de negócios de impacto social e coordenadora na Redes da Maré. Pâmela Carvalho é historiadora, educadora, co... saiba mais