Quanto vale a sua vitória?

Crédito: Viktor Aheiev/ iStock

Cristina Naumovs 3 minutos de leitura

Nunca foi sobre mim. E não digo isso para ganhar biscoito, não.

Ando numa semana nostálgica - devem ser os astros – e fiquei me lembrando de quando eu era criança. Os meus amigos da rua de casa eram negros, o empregado lá de casa era o Mané, um homem gay, mas que à noite era a Margarida. A melhor amiga da minha mãe era lésbica e a mãe dela era uma pessoa com nanismo.

De novo, digo não para ganhar biscoito, até porque nada disso é mérito meu, mas porque todas essas pessoas, de alguma forma, fazem parte de quem eu sou hoje. Isso e todo o resto da minha criação, para o bem e para o mal, me fizeram essa criatura de agora.

quando é a hora de comemorar? Vale comemorar sozinha? Vale achar que é sobre a minha vitória?

Tenho visto muita gente reclamando em pequenas rodas sobre projetos individuais em causas que deveriam ser coletivas, muita gente um tanto desencantada com as conversas sobre futuro, justamente porque não entendemos que só vai ser bom quando for bom para mais gente, que não é sobre uma única mulher branca chegar lá.

Falei muito disso em uma entrevista que dei tempos atrás na CNN Brasil, e que me faz pensar no seguinte: quando eu me dou bem, a molecada lá do meu bairro também se dá? Quando eu me dou bem, o Mané/ Margarida se dá bem? Eu tenho a resposta: não.

As pautas que chamo de civilizatórias deveriam ser coletivas e a gente só deveria relaxar quando todo mundo tivesse atravessado a ponte. "Ah, mas eu atravessei sozinha". Certeza? Ou será que esse mérito todo é só falta de memória de quem segurou sua mão, te indicou para uma vaga, lembrou de você quando viu um projeto que faria sentido para você, que te chamou para um trabalho que nem você tinha certeza que dava conta?

Crédito: kjpargeter/ Freepik

Será que existe mesmo "o mérito meu"? Um tanto até posso achar que sim (Deus salve a psicanálise, que me ajudou muito a me entender uma pessoa competente), mas sei que ter uma cara branca, olho verde, um sobrenome que veio da Letônia (quantas vezes você, com sobrenome gringo, já respondeu de onde veio a sua família?) me ajudaram demais.

As pautas que chamo de civilizatórias deveriam ser coletivas e a gente só deveria relaxar quando todo mundo tivesse atravessado a ponte.

E aqui a questão é: quando é a hora de comemorar? Vale comemorar sozinha? Vale achar que é sobre a minha vitória? Sobre ser a primeira da minha família a um monte de coisas? Vale sequestrar a pauta de mulheres e achar que, se eu cheguei, mulher branca, acabou, é tetra, vamo nessa? Onde ficam as mulheres negras? E as LGBTQ+? As mulheres com deficiência?

Óbvio que essas pautas são cansativas, estão atrasadas, parecem todas sem solução. Mas será que é isso de verdade ou a gente está se distraindo com a fumaça e acreditando num hype que é individual e, muitas vezes, a serviço de manter a estrutura como sempre esteve?

Outro dia, uma mulher negra que admiro muito me disse: o racismo é muito sofisticado e só com muita sofisticação vamos conseguir desmontá-lo. Não consegui mais esquecer essa frase. A gente precisa mais do que só emular um comportamento que combinamos lá atrás que íamos tentar mudar.

E por isso volto a dizer: nunca foi sobre mim. E talvez não seja só sobre você.


SOBRE A AUTORA

Cristina Naumovs é consultora de criatividade e inovação para marcas como Ambev, Doritos e Havaianas, entre outras. Tem passagens pela... saiba mais