A revolução alimentar a partir da interseção dos dados


David Hertz 6 minutos de leitura

A frase “conhecimento é poder” foi registrada pela primeira vez no século XVI e a autoria atribuída a Francis Bacon. De lá para cá, os 500 anos que nos distanciam daquele momento histórico trouxeram uma expansão dessa ideia.

No mundo contemporâneo, tornou-se importante distinguir conhecimento de informação. Portanto, ainda que possamos dizer que conhecimento é poder, é preciso reafirmar que o conhecimento não é apenas o acúmulo de informações, mas sobretudo a forma como as coletamos, lemos e interpretamos.

O Brasil dos últimos seis anos se tornou cada vez mais resistente à transparência e ao recolhimento de dados. A resistência que o IBGE tem encontrado ao longo dos últimos meses para realizar o censo é apenas a ponta de um problema muito mais complexo. Pontuo isso aqui pois acredito que é cada vez mais necessário defendermos as instituições democráticas, e o IBGE é uma delas.

Todavia, o que temos visto é como as organizações da sociedade civil se tornaram um espaço fundamental de recolhimento de dados e informações. À primeira vista, para um leigo, pode parecer que a coleta de dados é um movimento com poucos desdobramentos na prática. Porém, o que quero defender ao longo desse breve texto é justamente o oposto.

o número de pessoas atingidas pela fome no Brasil subiu de 19 milhões para 33 milhões na pandemia.

A mais recente pesquisa da rede Penssan comprovou que o número de pessoas atingidas pela fome no Brasil subiu de 19 milhões para 33 milhões durante a pandemia. Esses dados são o ponto de partida que permitiu constatar a geografia da fome.

Segundo o Vigisan ((Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil), em 37,8% dos lares onde há insegurança alimentar severa habitam crianças menores de 10 anos. Dados como esse afirmam a necessidade de reformular políticas públicas em todos os níveis de governo.

Pesquisas desse tipo são complexas. Há um processo delicado e cheio de imbricamentos que gera a formulação de questões, bem como a interpretação dos dados que são recolhidos.

DEMOCRATIZANDO O ACESSO À INFORMAÇÃO

Desde o começo da pandemia, tenho participado de um grupo latino-americano da Ashoka, a maior rede global de empreendedores sociais, que está focado nas mudanças sistêmicas dos sistemas alimentares.

São encontros nos quais discutimos o impacto da produção de alimentos diante da crise climática, do desabastecimento das cidades e a conexão com o aumento de preços que vem da instabilidade econômica global.

Debatemos soluções possíveis de serem escaladas na transição da agroecologia e a regeneração de paisagens mais afetadas, as inovações em agricultura urbana e periurbana, mas, mais do que isso, como colocar as populações marginalizadas no centro da construção das políticas públicas. Para isso, precisamos de dados.

Somente com acesso à informação é que conseguimos propor melhores soluções, baseadas em evidências.

Nesse campo, quero destacar duas iniciativas que abriram meus horizontes nos últimos dias. A primeira é da Agência Bori, que promove uma mudança na cultura científica do país. Iniciativa da Ashoka Fellow Ana Paula Morales, conforme se apresenta em seu site, “a Bori é um serviço único para a imprensa que conecta a ciência brasileira a jornalistas de todas as áreas de cobertura”.

Somente com acesso à informação é que conseguimos propor melhores soluções, baseadas em evidências. O trabalho da Bori é fundamental. Eles têm traduzido dados científicos para que possam ser usados e difundidos.

Democratizar o acesso aos dados passa por essa tradução que permite ampliar o público que tem acesso às informações. Não basta o recolhimento de dados relevantes se eles seguem distanciados do público. A Bori busca as melhores formas para potencializar o alcance dos dados.

Um exemplo do trabalho inovador da agência é no acesso dedicado a jornalistas. Partindo de inúmeras palavras chaves, eles têm acesso ao que tem sido produzido por cientistas de diversas áreas sobre os mais variados temas, inclusive sobre sistemas alimentares. Esse tipo de conexão democratiza o conhecimento e amplia seu alcance.

MULHERES NO CAMPO

O segundo exemplo é tão necessário e relevante quanto o primeiro, e completamente disruptivo porque não é da academia e sim dos próprios protagonistas. Vem do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTAZM), em Viçosa (MG).

Uma das suas iniciativas é a Caderneta Agroecológica, que permite que o registro da produção, das vendas e trocas, fortalecendo o movimento de mulheres rurais. Através de ferramentas como mapa socioeconômico e um mapa da biodiversidade, a iniciativa fortalece lideranças femininas.

A Caderneta Agroecológica é uma iniciativa que fortalece as lideranças femininas no campo.

Os dados são registrados pelas agricultoras, mas analisados pela equipe técnica do CTAZM, gerando informação sobre o papel crucial exercido pelas mulheres no campo.

Esta segunda iniciativa é fenomenalmente criativa, simples, mas poderosa, pois com papel e caneta, e por um período de um ano, dados diários são coletados. Além dos dados principais, os analistas têm recolhido e construído novas constatações sobre o feminismo na área rural, que entram em evidência para o sucesso da agricultura familiar e do abastecimento de alimentos frescos e saudáveis nas cidades.

Além disso, a forma como esses dados são coletados coloca na ponta dos dedos das mulheres o protagonismo. É através das vozes poderosas dessas mulheres que se pode contar toda uma nova história sobre agroecologia e sobre o lugar do trabalho da mulher no campo.

TRANSFORMAÇÕES SISTÊMICAS

Retomo aqui o que mencionei no início: dados são importantes, mas não basta apenas coletá-los. A forma como os coletamos e interpretamos é um elemento importante para refletirmos sobre os caminhos de democratização do conhecimento. E é nisso que a Agência Bori tem se debruçado.

A maior parte dos problemas que o mundo enfrenta está, de alguma forma, entrelaçada aos sistemas alimentares em curso.

Por outro lado, quem coleta os dados também altera o tipo de história que se conta. É o que vemos através dos olhos das mulheres que colaboram com o CTAZM. Cada vez mais temos acessos a dados novos que fogem do óbvio e dos caminhos tradicionais de recolhimento de informação. Isso é um advento importante, sobretudo quando estamos propondo operar transformações sistêmicas na sociedade.

A maior parte dos problemas que o mundo enfrenta – crise climática, emissões de CO2, crise de abastecimento, insegurança alimentar, entre outros – está, de alguma forma, entrelaçada aos sistemas alimentares em curso. Propor resoluções passa pelo mapeamento transdisciplinar de dados.

Ou seja, se por um lado precisamos defender instituições como o IBGE, por outro, é importante fortalecermos iniciativas que nos oferecem não apenas novos dados, mas novos protagonistas para geração de informação. Somente através de leituras transversais é que poderemos propor soluções criativas para os imbricamentos que os problemas sociais apresentam para o mundo hoje.


SOBRE O AUTOR

David Hertz é chef, co-fundador da Gastromotiva, do Refettorio Gastromotiva e do Movimento de Gastronomia Social. Empreendedor social ... saiba mais