IA generativa e a terceirização da imaginação

Crédito: Wirestock/ Marcio Binow da Silva/ iStock

Fred Gelli 5 minutos de leitura

Imaginar. Imaginar sempre foi um dos maiores diferenciais do Sapiens em relação a qualquer outro ser vivo neste planeta. Enxergar algo que ainda não existe. Conectar o que não foi conectado. Inventar. Dá para dizer que somos o animal mais criativo concebido pela evolução.

Nossa programação é aberta. Diferentemente de outros seres, que são geniais em suas relações com os ambientes, que constroem ninhos intrincados, que utilizam técnicas surpreendentes de caça e acasalamento, mas que sempre operam em cima de um roteiro quase que imutável.

O tubarão está há pelo menos 150 milhões de anos fazendo exatamente as mesmas coisas. Assim como as coníferas. Quem inventa o novo somos nós. E agora inventamos algo para inventar pela gente. 

Recentemente, diante do desafio de um novo projeto, com tudo o que um bom briefing poderia ter, como profundidade conceitual, liberdade criativa e desafio de redução de impacto ambiental, me vi começando o processo criativo usando uma dessas incríveis “máquinas de inventar”. 

Era a KREA, uma IA generativa que, a partir de um rabisco – no meu caso, feito no trackpad do laptop –, oferece dezenas de interpretações muito interessantes do que ela entende que você supostamente teria imaginado por trás daquelas linhas meio tronchas. E, juro, não tem como não se surpreender com os resultados, especialmente pela velocidade de resposta.

Diferentemente do Midjourney ou mesmo o DALL-E, em que precisa escrever os prompts com alguma precisão, na KREA, a partir de um rabisco de criança, surgem instantaneamente renderings super bem-acabados do que ela imagina que você imaginou.

Crédito: KREA.AI

E é aí que o bicho começa a pegar. Mais uma terceirização. Dessa vez, da nossa capacidade de imaginar. Logo a tal que nos diferencia. 

Num dado momento, depois de ter feito mais de 50 experiências, salvando dezenas de formas diferentes, me dei conta de que a parada vicia! Me senti como um daqueles coroas na frente de um caça níqueis sempre acreditando que a próxima jogada será a melhor. Só mais uma! Agora vai!

Um pouco desconfortável com o meu sentimento, sai do escritório em casa e, no caminho para a cozinha, passei por um vaso com uma grande bromélia florida. Toquei nela e, nessa hora, me dei conta de que eu estava indo contra tudo o que sempre acreditei sobre processos criativos.

agora, o que está em jogo é exatamente a essência do que nos faz humanos, nossa inteligência e capacidade de inventar.

Meu briefing pedia inspiração em uma flor e, até aquele momento – dois dias de trabalho – eu ainda não tinha uma daquelas flores nas mãos. Não tinha feito meu tradicional mergulho conceitual para mapear significados que aquele produto deveria ativar nas pessoas.

Estava ali como um zumbi hipnotizado por uma ferramenta que me oferecia um atalho, um prazer instantâneo em pencas de soluções muito razoáveis. Meio que uma ejaculação precoce criativa na qual as preliminares são totalmente desnecessárias. O que vale é ir direto ao ponto.

E olha que eu sou macaco velho de processos criativos. Design thinking, design feeling, biomimética, cocriação, nada disso estava na fita até aquele momento. Era eu a KREA. Ela imaginando por mim.

Estádio Nacional de Pequim (Crédito: beijingbirdsnet)

Recuperando a minha ainda ativa capacidade de imaginar, comecei a pensar em como serão os processos criativos da turma que já nasce podendo usar essas ferramentas. Aqueles que, diferentemente de nós, terão menos oportunidades de se “alfabetizarem” em processos criativos estruturados.

Por que gastar energia com essa coisa ultrapassada de ter que imaginar? O risco de o nosso cérebro interpretar dessa maneira é enorme. Ele está sempre atrás de uma chance de economizar energia com o que deixa de ser essencial.

Sempre fui contra o que chamava de "inspiração encadernada", que vem da tentativa de achar em livros de design – e, agora, no Pinterest – ideias próximas da que precisamos ter. Ideias que outras pessoas tiveram para desafios diferentes do seu. Um prato cheio para criações frankensteins que misturam um pouco de muitas ideias. Caminho provável para a falta de brilho e originalidade.

As ideias que fazem a diferença no mundo, de um modo geral, são aquelas que emergem de uma jornada exploratória rica e diversa. Sempre com a participação das pessoas que irão desfrutar da proposta. Com elas e não para elas. As ideias surgem depois de muitos erros e acertos, no cruzamento entre o embasamento conceitual, metodologias estruturadas e muita intuição.

Agora estamos sendo tentados pelas inspirações instantâneas, quase um miojo criativo. Uma múltipla escolha de opções geradas por cérebros eletrônicos que oferecem economia do seu cérebro biológico, em troca do seu cadastro para que, na sequência, quem sabe, você passe para versão paga. Por sinal, uma pechincha de US$ 20 por mês.

E aí? O que isso pode mudar na nossa capacidade orgânica de inventar, de imaginar, de resolver problemas? Será que, de alguma forma, estamos correndo o risco de tornar nossa realidade menos interessante sem as ideias?

É claro que as IAs generativas são ferramentas incríveis que estão revolucionando nossa realidade, talvez mais do que qualquer outra invenção até aqui. Saber usá-las de forma correta para aumentar a produtividade e ampliar a exploração de possibilidades é prioridade para nós na Tátil e tenho certeza de que na maioria dos espaços criativos no mundo. Mas, imaginar as próximas gerações completamente dependentes delas para criar, confesso que me deu arrepios. 

Outro risco que imaginei é um certo impacto no ego do criativo. Quanto tempo levaria para desenhar, renderizar ideias como aquelas geradas instantaneamente pelas IAs? Ou escrever as bases de um roteiro de um filme, ou ainda produzir fotos complexas com cenários e personagens extravagantes?

Crédito: Kuka Robotics

Fiquei imaginando um apertador de parafusos no começo da era industrial diante de um Kuka – marca registrada de robôs industriais – ou ainda um monge copista durante a Idade Média diante da prensa de Gutenberg.

Vale lembrar que, mesmo que as sensações de ameaça e frustração possam ser parecidas, existe uma diferença gigantesca. Novas tecnologias sempre foram disruptivas às anteriores. Na área criativa os computadores revolucionaram tudo o que existia.

Mas agora o que está em jogo é exatamente a essência do que nos faz humanos, nossa inteligência e capacidade de inventar. Foi por conta delas que prosperamos. O que poderá acontecer com a terceirização dessas competências?

Uma sensação de impotência diante da falta das ferramentas generativas pode, quem sabe, vir a ser um efeito colateral. Nossos talentos, que levamos milênios para desenvolver, estão realmente ficando obsoletos. 

Quanto ao meu projeto? Bem, resolvi buscar inspiração no Jardim Botânico, na minha eterna fonte primária: a inteligência natural.


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais