Demissões mostram nova realidade do mercado de trabalho

Startups que atraíram milhares de talentos se veem forçadas a demitir, mas muitos escolhem sair por conta própria em busca de melhores empregos

Crédito: Eduardo Alexandre/ Adolfo Félix/ Unsplash/ Klaus Vedfelt/ GettyImages

Camila de Lira 6 minutos de leitura

Era uma vez um unicórnio que perdeu o chifre e foi obrigado a virar camelo, com corcovas que o preparam para qualquer deserto. Era uma vez um herói que cansou de “novos ciclos” e passou a procurar jornadas com novos significados. Duas histórias fictícias, mas que conseguem ilustrar a realidade do mercado de inovação brasileiro: entre expectativa e realidade. Entre demissões em massa e demissões voluntárias.

Dados levantados pela LCA Consultores mostram que, nos três primeiros meses de 2022, a média de pedidos de demissões foi de 565,4  mil, número 30,7% maior do que o registrado no mesmo período de 2021. Só no mês de março foram 603,1 mil demissões voluntárias, quer dizer, quando o funcionário pede para sair, abrindo mão de indenizações.

Tatiana Sadala, da Todas Group

A “great resignation” brasileira tem cara: quase 2% pediram para sair de companhias de informação e comunicação; 1,7% de atividades científicas e técnicas. Por  outro lado, startups como QuintoAndar, Loft, Oilist e ebanx, recém-nomeadas unicórnios, enxugaram entre 20% e 30% do quadro de funcionários. 

Dados da página LayOff Brasil, que reúne informações de colaboradores desligados de startups brasileiras, mostram que foram aproximadamente dois mil demitidos em junho, totalizando três mil desligamentos só em 2022. 

Os fenômenos não têm a mesma explicação, mas podem dar lições parecidas para o mercado. Primeiro, que há uma nova realidade em curso: a mudança de prioridades. 

“A ‘grande renúncia’ é uma espécie de gota d’água com relação a condições de trabalho insatisfatórias e que ganharam nova dimensão em função da pandemia”, comenta Alexandre Pellaes, pesquisador e especialista em novos modelos de gestão e futuro do trabalho.

Alexandre Pellaes, pesquisador: grande renúncia é uma espécie de gota d'água

A prioridade também será diferente para as startups. E isso é um movimento que não se restringe ao mercado brasileiro, avalia Guilherme Bertoni Machado, professor na área de tecnologia e coordenador da Start, incubadora de negócios da ESPM.

“O mundo das startups chamou muito investimento, já que elas precisam de bastante dinheiro para escalar e começarem a ser lucrativas. Mas, no cenário econômico global, não há muita lenha para queimar. Foi preciso cortar custos”, explica.

HISTÓRIAS BEM CONTADAS?

A segunda lição a se aprender com as demissões é sobre storytelling. A narrativa em torno do modo de trabalhar de uma startup criou disparidades entre os colaboradores. As funções com nomes novos, os benefícios diferentes, os programas de crescimento de carreira,  o espaço despojado e a hierarquia horizontal, tudo isso atraiu talentos de todas as áreas. 

A pandemia veio para mudar uma parte dessa dinâmica, com o trabalho remoto. O que sobrou foi o dia a dia de funções não só mais desafiadoras – porque lidam com inovação – como também mais sujeitas à pressão por resultados.

Deives Rezende, da Conduru Consultoria

“Muitas dessas startups venderam a ideia de que são lugares quase mágicos. Mas, no fim, são empresas como quaisquer outras, que precisam faturar, pagar seus custos, dar lucro”, aponta Diego Godoy, headhunter da muuda.work e top voice do Linkedin.  

“Não basta uma narrativa de marca e negócio linda e bem contada, ela precisa ser vivenciada na prática. Acabou o storytelling, estamos na era do storydoing”, acredita a cofundadora da plataforma digital de crescimento profissional feminino Todas Group, Tatiana Sadala. 

Para ela, o desequilíbrio entre discurso e ação nas empresas tem sido um dos grandes motivadores das demissões voluntárias. No caso das mulheres, o descompasso entre ação e discurso fala ainda mais alto.

Mais de 70% das mulheres dizem que as práticas das empresas onde trabalham não são coerentes com o que elas dizem sobre equidade e inclusão.

“Quando a pandemia estourou e alguém passou a ter que cuidar dos filhos e dos pais, foram raros os casos em que não eram as mulheres. Uma em cada três chegou a pensar em deixar o emprego. Mais de 70% dizem que as práticas das empresas onde trabalham não são coerentes com o que elas dizem sobre equidade e inclusão”, aponta Tatiana. 

Para o fundador da Conduru Consultoria, Deives Rezende, o trabalho remoto despiu a relação entre gestores e funcionários. Onde havia calor humano e a camaradagem do dia a dia, agora há uma câmera e uma tela. Isso faz diferença nos conflitos, assegura Rezende.

Na ponta empregadora, o storytelling deu “poder” ao marketing dos unicórnios, a ponto de pegar a todos desprevenidos com as demissões em massa. 

Guilherme Machado, da ESPM

O QuintoAndar talvez tenha sido o caso mais emblemático: a demissão de centenas de funcionários (informações oficiais falam em 4% do quadro, mas as não-oficiais apontam para 20%) enquanto a startup seguia com um contrato milionário de patrocínio no Big Brother Brasil 2022. 

A falta de transparência incomodou o mercado. “Muitas empresas, quando viraram unicórnio, se basearam em marketing e altos salários. Isso fez as pessoas pensarem que elas estavam ‘bombando’ ”, diz Machado, da ESPM. 

Patrocínio do Quinto Andar no BBB 22: festa para uns, demissão para outros

CAMELOS E UNICÓRNIOS NA BRIGA

A mudança da “fauna” das startups foi outra dura lição que o mercado está aprendendo. No lugar dos unicórnios, vem os camelos. “Novas startups tentarão montar modelos de negócio pautados num crescimento mais lento, mas mais estável. Não vão tentar buscar uma super base de clientes e crescer queimando dinheiro, mas sim de forma orgânica, para ter receita desde o início e, assim, mostrar aos investidores que é viável”, diz Machado.

Diego Godoy, da muuda work

Godoy lembra que, mesmo com um novo modelo, é preciso ter em mente que startups implicam em risco. A precificação mais modesta dos investidores não vai retirar o risco que é criar um produto “inovador e fora dos parâmetros”. A perspectiva é que elas voltem a contratar, porém em menor quantidade e talvez com salários menores, avalia.

De acordo com João Gabriel Santos, criador do LayoffBrasil, o número de desligamentos aumenta, mas a procura também. Segundo ele, pessoas do setor de tecnologia até pedem para tirar o currículo da plataforma por estarem “recebendo 10 ligações por dia” de recrutadores. O desafio, no caso do Brasil, será disputar profissionais com empresas do exterior, que possibilitam o trabalho remoto. 

NOVO TIPO DE COLABORADOR

Se as startups vão de unicórnio a camelo, os funcionários vão do propósito para o respeito próprio. “O propósito é bonito de colocar no papel, mas, na hora hora de levantar de manhã e fazer o trabalho, ele não vai dar conta. O novo mote das pessoas precisa ser o autorrespeito”, diz Rezende.

A busca pela flexibilidade e pela individualização das relações de trabalho é colocada como prioridade também pelos millennials, geração que está no mercado há algum tempo. “As novas gerações estão cada vez menos apegadas às empresas. Elas têm, entre seus objetivos, a busca de um propósito e um novo equilíbrio entre vida pessoal e trabalho”, diz Tatiana, da Todas Group.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais