Femtechs brasileiras querem acabar com a desigualdade. De prazer
Feel e Lilit se juntam e mostram que incentivar o bem-estar sexual pode ser uma boa oportunidade de negócios para startups
O prazer sexual é um assunto que, muitas vezes, fica entre quatro paredes. Seja do quarto ou das lojas especializadas, envolto em uma dose de tabu ou de vergonha – ou ambas. Para tornar o assunto menos controverso, duas femtechs brasileiras, a Lilit e a Feel, se uniram em uma parceria que visa naturalizar o tema não apenas para o público, mas também nas negociações com varejistas.
“Queremos deixar claro que a sexualidade não é um discurso censurável, mas um direito. É parte da saúde”, comenta Marina Ratton, fundadora da Feel, que comercializa lubrificantes e hidratantes íntimos de composição vegana.
“Não é a questão do vibrador ou do lubrificante, é sobre educar as mulheres a falarem sobre intimidade, para que elas tenham uma relação satisfatória e prazerosa no quarto e na vida”, complementa Marília Ponte, CEO e fundadora da Lilit, criadora do vibrador Lilit Bullet.
A desigualdade de prazer, ou “orgasm gap”, entre homens e mulheres foi um fator que incentivou a criação das duas empresas, em 2020. Esse é um assunto que, mesmo no mundo das pesquisas, é complicado abordar.
No Brasil, um estudo feito em 2016 pelo Projeto de Sexualidade da Universidade de São Paulo apontou que 55,6% das brasileiras têm dificuldade de chegar ao orgasmo. Já entre os homens o percentual é de apenas 4%.
Nos Estados Unidos, os dados publicados no Archive of Sex Behavior (Arquivo de Comportamento Sexual) são de 2018 e chegaram a virar tema de série da Netflix ("Fundamentos do Prazer"): 95% dos homens heterossexuais dizem sempre atingir o orgasmo na hora do sexo. Entre as mulheres, a proporção cai para 65%, ou seja, 30 pontos percentuais de diferença.
Essa diferença tende a se repetir, criando um “ciclo negativo” do orgasmo, de acordo com o estudo Assessing the Orgasm Gap within Mixed-Sex Couples, da Universidade Rutgers, dos Estados Unidos. O estudo mostra que as mulheres que atingem menos o clímax tendem a não tentar alcançá-lo novamente nas relações sexuais seguintes.
“Fizemos rodas de conversa e pesquisas para desenvolver a ideia do produto. Descobrimos que 61% das mulheres já apresentaram desconforto em algum momento da relação sexual, e que 40% sentem isso durante a relação no dia a dia”, explica Marina.
SEGMENTO LUCRATIVO, MAS SENSÍVEL
Lançadas em 2020, as marcas sempre se viam como parceiras. A Feel era chamada para as pesquisas e entrevistas de mercado feitas pela Lilit, e esta levantava pontos do público que tinham sinergia com a audiência da Feel. Ambas entendiam as dificuldades de alcançar, no mercado da intimidade, o crescimento exponencial digno de startups e marcas digitais de venda direta ao consumidor.
As principais redes sociais retiram ou limitam posts sobre sexualidade, o que torna a promoção de conteúdo sobre vibradores, por exemplo, bem complicada. “Estratégias de crescimento normais são negadas a negócios como o nosso. Por outro lado, isso nos deu oportunidade para hackear o sistema”, conta Marília.
As marcas resolveram investir em menções orgânicas do produto, bem como em meios próprios de comunicação, como newsletters. A diversificação de canais, bem como a colaboração entre os “concorrentes complementares” fez diferença. Além disso, as executivas trocavam contatos e se apoiavam para ampliar o alcance junto ao público.
“Fizemos uma curadoria de profissionais de saúde da nossa comunidade, aqueles que nos ajudaram na prototipação dos produtos – ginecologistas, fisioterapeutas pélvicas, terapeutas – e criamos um guia para elas”, conta Marina. A partir dessa rede, as marcas conseguiram atingir seu público-alvo.
A flexibilidade na busca pelo target se traduziu em números: desde 2021, quando foi criada, a Lilit faturou R$ 1,7 milhão. Já a Feel vem num ritmo de crescimento de 20% ao mês desde o começo do ano. A startup conseguiu captar R$ 550 mil no equity crowdfunding da Wishe Capital, além de marcar presença na primeira turma de aceleração da GB Ventures, d'O Boticário.
FINALMENTE, O GRANDE VAREJO
“No atual ‘inverno das startups’, há uma exigência para se evitar a queima louca do dinheiro em caixa. Para nós, entender o crescimento orgânico e sustentável é bom para os negócios”, analisa a fundadora da Feel.
O olhar de negócios, bem como a visão ampliada de que as marcas não atuam apenas no momento íntimo, mas na “jornada da intimidade” e na saúde feminina, fez com que elas chegassem aonde outras do setor não conseguiram chegar: as gôndolas de grandes varejistas.
Os produtos da Feel passaram a ser vendidos nas Lojas Renner e no site de comércio eletrônico Amaro – levando junto o Lilit Bullet. A startup brasileira foi a primeira marca de vibradores comercializada em grandes e-commerces, como Magalu e Beleza na Web.
Estudo do Projeto de Sexualidade da Universidade de São Paulo apontou que 55,6% das brasileiras têm dificuldade de chegar ao orgasmo, contra apenas 4% dos homens.
O resultado, segundo Marília, foi explosivo, da melhor maneira possível. “Quando lançamos o Bullet, ele foi um dos SKUs [Stock Keeping Unit, ou Unidade de Manutenção de Estoque] de novas marcas que mais vendeu, logo nas primeiras semanas”, comemora.
Para o futuro, as marcas querem chegar às farmácias. “Queremos estar onde os consumidores estão. Faz sentido vender [tanto o Bullet, quanto o lubrificante] no mesmo lugar onde as consumidoras compram o skincare, o absorvente”, diz Marília.
APERTA O PLAY
Marina aponta que não existem no YouTube, ou em canais de vídeos oficiais, tutoriais explicando como se coloca o coletor menstrual, por exemplo. “O vídeo no YouTube mais acessado sobre isso é uma representação pélvica de acrílico, que para muitas não deixa claro o que fazer. Não conhecemos o nosso corpo, não falamos dele e não o vemos representado”, critica a fundadora da Feel. Por isso, as marcas planejam criar um “Amazon Prime” de educação sexual.
“Queremos ser a nova plataforma de intimidade feminina, com vídeos e conteúdo para, de fato, falar sobre o mundo do sexo sem passar pelo viés pornográfico ou erotizante”. A ideia é mostrar um “erótico naturalizado”. “Será um espaço onde mulheres reais podem explicar para outras, longe da lógica da pornografia, e sim do ponto de vista da normalização do corpo”, diz Marina.
Para ambas, é muito importante que a discussão não se limite a um gênero específico – no caso, a quem possui útero e clitóris. Até porque, a própria Feel é procurada por homens não trans. Tanto que uma das pesquisas que a companhia está fazendo visa criar produtos pensados para o público masculino. “A educação sexual é uma forma de todos ganharem. Todos os gêneros são reféns da desinformação e do tabu”, acredita Marina.