Não falta mais nada: já temos o primeiro concurso de Miss Inteligência Artificial

Críticos argumentam que a Miss IA é uma celebração de padrões de beleza irreais e de falsas influenciadoras altamente sexualizadas

Créditos: Pixabay/ Freepik

Emilie Lavinia 6 minutos de leitura

Do concurso de beleza participam influenciadoras de viagens sofisticadas, representando países como Marrocos e França; ativistas humanitárias dedicadas a questões LGBTQ+ e de saúde da mulher; e, claro, modelos de redes sociais com rostos perfeitamente simétricos, vestindo roupas justas de academia. Mas há um detalhe: todas foram criadas por inteligência artificial.

Uma lista de 10 influenciadoras geradas por IA chegou à etapa final de avaliação do concurso, inédito no mundo, competindo por um prêmio de US$ 20mil e pela chance de serem coroadas “Miss IA”. Se você estava cético sobre o que os resultados de uma competição assim poderiam nos dizer sobre a natureza dos influenciadores de IA e sobre as pessoas que os criam e controlam, a lista, provavelmente, não vai ajudar a acalmar suas preocupações.

Desde que o World AI Creator Awards (WAICA) anunciou o concurso, em abirl, em parceria com a plataforma de conteúdo Fanvue (similar ao OnlyFans), cerca de 1,5 mil criadores de inteligência artificial dos Estados Unidos, África, América do Sul, Índia, Japão, Coreia do Sul e Europa inscreveram suas candidatas. Elas foram julgadas com base em três critérios: realismo, tecnologia e influência social.

A lista final inclui Kenza Layli, uma voz em defesa do feminismo no Oriente Médio; Anne Kerdi, promotora do turismo francês e da conservação dos oceanos; e Aiyana Rainbow, a cara do ativismo LGBTQ+.

Em um concurso onde as participantes fossem mulheres reais, essas qualificações seriam realmente impressionantes. Mas, como nenhuma delas mulheres é realmente uma guerreira contra a endometriose, essas identidades são meramente simbólicas.

Esses personagens representam uma versão idealizada da feminilidade atribuída por seus criadores e amplamente influenciada pelo cenário das redes sociais e do culto a celebridades.

REFORÇANDO ESTEREÓTIPOS

As respostas ao concurso têm sido diversas. Alguns veem a competição como uma vitrine de talento técnico e criativo, celebrando o hiper-realismo dos influenciadores de IA e inaugurando um novo e empolgante paradigma para o marketing digital.

“Os criadores selecionados conquistaram públicos impressionantes e engajados, em pouco tempo,” diz Michael Bloch, especialista em relações públicas e um dos juízes do concurso. “Isso é atraente para marcas que buscam novas ideias e oportunidades de parcerias.”

Bloch está correto, até certo ponto. Influenciadoras de IA não discutem, não envelhecem, não se cansam e podem anunciar qualquer produto que se queira promover – mesmo que não possam, elas mesmas se beneficiar do produto.

Afinal, influenciadoras de IA não podem realmente usar cremes para cuidados com a pele, suplementos alimentares nem qualquer um dos incontáveis produtos ligado a estilo de vida que são vendidos nas redes sociais.

De fato, alguns críticos argumentam que a Miss IA é uma celebração de padrões de beleza irreais e de falsas influenciadoras altamente estereotipadas e sexualizadas, que alimentam o impacto negativo das redes sociais.

Outros questionaram o fato de a competição ser apresentada como um concurso de beleza desde o início, criticando o uso de um estilo de competição ultrapassado, que atende ao olhar masculino.

Se esta é uma competição para designers de IA, por que não chamá-la simplesmente assim? Por que atribuir agência às criações e estabelecer um padrão impossível de beleza ao chamar isso de “concurso”?

“O ponto central de um concurso de beleza é que não existe o tal modelo perfeito de beleza”, diz Mark Frankel, professor da London Interdisciplinary School que dá aulas sobre dark web e inteligência artificial. “A IA está partindo de uma ideia totalmente irreal de perfeição, que ela transforma em algo fantasioso em vez de real.”

ATIVISMO ARTIFICIAL

Apesar das declarações bem-intencionada sobre diversidade, os organizadores do WAICA na certa estavam ciente do tipo de inscrições que um concurso de IA atrairia. Ao posicionar o evento como um concurso de beleza, em vez de uma competição de design, o WAICA automaticamente restringiu sua definição de diversidade.

Os criadores, obviamente, inscreveriam concorrentes que se parecem com rainhas da beleza, com pouca variação do padrão normalmente aceito. Influenciadoras altamente sexualizadas, com características irreais, têm surgido desde o advento da IA. Assim, da perspectiva do WAICA, um concurso pode ter parecido a forma mais natural para julgar essas criações.

Se esta é uma competição para designers de IA, por que não chamá-la simplesmente assim?

Cada criador atribuiu um conjunto de valores, atributos físicos e comportamentos à sua candidata. Mas, embora a lista de finalistas inclua ativistas de diversas causas e defensoras dos direitos das mulheres, o dinheiro do prêmio irá para os criadores, bem como qualquer receita que venha de parcerias com marcas.

Aqui, entramos em uma zona nebulosa: as vencedoras de concursos de "misses" geradas por IA vão exaltar as virtudes do feminismo, vender produtos de beleza que não podem usar e, provavelmente, criar conteúdo adulto no Fanvue para assinantes.

Só que elas são controladas por aqueles que as criaram. Essas "influenciadoras" são, essencialmente, produtos, geradoras de receita. Isso torna altamente discutível o pretenso ativismo dessas figuras.

Alguns modelos de IA já têm centenas de milhares de seguidores e ganham milhares de dólares por mês em colaborações com marcas, incluindo duas das juradas do concurso. Emily Pellegrini foi projetada por um criador anônimo, que pediu ao ChatGPT para descrever a garota dos sonhos do homem médio e criou a personagem com base nisso.

Pellegrini, supostamente, ganha muito dinheiro no Fanvue e seu criador recebe mensagens diretas de celebridades e atletas famosos. A outra juíza de IA, Aitana, foi criada por Rubén Cruz e gera para ele até US$ 10 mil por mês em colaborações com marcas.

MAGRAS, COM PELE PERFEITA E RADIANTES

Cada influenciadora de IA na lista de finalistas é magra, tem a pele perfeita, cabelo e maquiagem impecáveis. Parecem supermodelos.

Embora não tenha passado pela cabeça dos jurados ou dos organizadores reforçar o lado mais sombrio do que é possível com IA, a lista de finalistas – mais o fato de que o patrocinador principal é uma plataforma de conteúdo adulto – sugere que essa coisa toda nunca foi realmente sobre talento criativo ou sobre gerar novas ativistas para causas nobres.

Sempre foi sobre escapismo, objetificação e apropriação dos interesses das mulheres para ganhar dinheiro para os criadores.

“95% dos concursos são organizados por mulheres, para mulheres. As que participam falam sobre o empoderamento, os desafio e a amizade que as atraem", diz Sally-Ann Fawcett, uma das juradas do concurso Miss IA e autora de "Misdemeanours: Beauty Queen Scandals" (Contravenções: escândalos de rainhas da beleza, em tradução livre). "Pode ainda não ser possível transferir esses atributos para concursos de IA.”

Há um tom distintamente adulto aqui – um que fala de fetichização e controle. Enquanto os concursos tradicionais têm sido capazes de se afastar da sexualização, o Miss IA parece abraçá-la abertamente. Para um evento que se promove como hiper moderno, revolucionário até, isso parece, no mínimo, bizarro.


SOBRE A AUTORA

Emilie Lavinia é jornalista, sexóloga e consultora. saiba mais