A vida é confusão
Precário, provisório, perecível;
Falível, transitório, transitivo;
Efêmero, fugaz e passageiro;
Eis aqui um vivo, eis aqui um vivo.
Impuro, imperfeito, impermanente;
Incerto, incompleto, inconstante;
Instável, variável, defectivo;
Eis aqui um vivo, eis aqui.
Ouvindo esta música do Lenine de olhos fechados em um voo para São Paulo, me peguei em lágrimas fartas quando me dei conta do que se tratava. Ele usa uma sequência com mais de 20 adjetivos com conotações supostamente negativas, como imperfeito ou falível, para descrever simplesmente a manifestação mais original de todo o universo: a vida, ou melhor “o vivo”. Aquele que existe a partir da sofisticada alquimia bioquímica do cosmos e se manifesta em corpo e alma por aqui.
Como criaremos futuros positivos se estamos doentes demais para imaginá-los?
Sim. Se estamos vivos, somos realmente inconstantes e instáveis e nunca estamos satisfeitos. Em meio ao solo de piano de Amaro Freitas ao final da música, que parece dar cor e forma à explosão da vida, caíram muitas fichas ao mesmo tempo. Primeiro, a poesia e a arte são sempre atalhos para gente entender e sentir o que existe de mais importante. E depois, de como temos sido injustos com nós mesmos, cobrando a perfeição, a eternidade, o equilíbrio e a completude a meros seres vivos que somos. Uma incompatibilidade absoluta com a nossa própria natureza.
Em minha recente palestra no Web Summit, trouxe o valor do erro, do acaso e da imperfeição como essencial para a geração do novo, tanto no campo da tecnologia e da inovação, mas também na própria evolução da vida. Segundo Darwin, da Archaea, a simbólica primeira forma de vida que temos conhecimento até o sapiens (seguimos com a mania de nos colocarmos como o suprassumo da existência), a única coisa que podemos garantir é que se não fossem os tropeços nas cópias genéticas, ainda estaríamos presos nas poças gasosas de um planeta primitivo. Nós somos puro acidente.
E por que diabos resolvemos que temos que ser exatamente tudo que não somos? Essa ditadura maluca da performance, da produtividade e da infalibilidade parece ser a razão maior da doença coletiva que vivemos hoje. Da felicidade artificial do Instagram, aos filtros do TikTok, dos preenchimentos faciais bizarros aos coquetéis de proteína que prometem músculos tonificados para sempre, criamos uma perigosa armadilha para nós mesmos. A perfeição inalcançável.
O resultado? Uma sociedade doente, com novas gerações frágeis e infelizes, epidemias de solidão e a tal saúde mental virando o assunto de todas as pautas. Causa e consequência se alinhando na direção de futuros sombrios.
Como criaremos futuros positivos se estamos doentes demais para imaginá-los? O que terá que acontecer para cairmos na real e rompermos esse ciclo vicioso? Para começar, talvez devêssemos desmontar a ideia de que saúde mental exista. Ela parece ser mais uma das ficções que perseguimos. Como se os incômodos, os sofrimentos e os desequilíbrios não devessem acontecer. A vida normal, como lembra Lenine, é cheia disso. A busca por um estado de saúde inalcançável vira a razão da doença. Haja Rivotril.
O pior é que parece que a coisa vai complicar bastante. Se hoje as redes sociais já são esse esteróide do ego com a pequena dose de AI embarcada, com o lançamento das novas gerações do Llama e Gemini anunciadas pela Meta e pelo Google, o poder hipnótico das telas só vai piorar. Um dado curioso foi divulgado recentemente de que jovens americanos entre 10 e 19 anos têm uma propensão 50% menor de terem fraturas de ossos do que as gerações anteriores. Eles cada vez se expõem menos a riscos reais como andar de bicicleta, skate ou jogar futebol. Passam em média de cinco a nove horas por dia em frente às telas. Com isso as fraturas não são mais de pernas e braços - são psíquicas.
Antídoto para isso tudo? Segundo Gilberto Gil: Vida é dor e confusão, Vida é som e paixão, Vida é o amor.
Para completar as más notícias, essa geração é a primeira da história que apresenta um QI abaixo dos pais. O livro “A Fábrica de Cretinos Digitais”, do Ph.D. em neurociência francês, Michel Desmurget, destaca os impactos negativos na cognição pelo uso excessivo de telas e, acima de tudo, o comprometimento das habilidades sociais e emocionais. Uma geração com baixa resiliência, porque está cada vez mais distante das estratégias ancestrais da evolução de criar resistência para um indivíduo.
Cair e levantar, errar para acertar, quebrar a cara para evoluir. Se colocamos na conta a terceirização da nossa intuição para algoritmos como Waze ou Tinder, e ainda mais recentemente nossa imaginação sendo delegada às AIs generativas, também tema da minha palestra do Web Summit, o que vai sobrar do humano?
Parece que a China está cuidando disso. Além do TikTok não existir por lá, o governo instaurou uma lei que limita o uso de vídeo games por jovens abaixo de 18 anos a três horas por semana, e apenas entre sexta e domingo. Numa ditadura parece fácil. Por aqui, vejo meus amigos, pais de jovens e adolescentes, lutando com os dilemas diários cada vez mais complexos. Ter a coragem de comprar a briga de não dar um celular para uma criança de 10 anos, mesmo que todos os amigos da escola já o tenham, ou ainda encontrar uma maneira de limitar as horas de telas dos adolescentes sem que eles surtem e digam que vão se matar, tem se mostrado um pesadelo. Que bom que já passei dessa fase!
Antídoto para isso tudo? Segundo Gilberto Gil: Vida é dor e confusão, Vida é som e paixão, Vida é o amor.
Volto para este artigo com os aprendizados do SXSW sobre a inteligência social. Não tem jeito não. Vamos ter que investir no amor, nas relações, nos encontros de perto, nos abraços. Vamos ter que ler mais para os filhos pequenos, convidá-los para programas irresistíveis como acampar perto de cachoeiras, subir em árvores para comer fruta no pé, andar a cavalo. Para os adolescentes, abrir espaços para eles socializarem no mundo real, como por exemplo aprendendo a tocar instrumentos. É difícil imaginar melhor oportunidade para exercitar a inteligência social do que montar uma banda. Como sempre, parece que o desafio é criativo.
Penso em como as marcas poderiam ser aliadas neste projeto tão importante de regeneração social. Como, a partir dos seus lugares de potência, sem exigir ampliação do nível de consciência de CEO’s e sim instinto de manutenção de relevância, poderiam oferecer produtos e serviços que estimulassem a inteligência social verdadeiramente, ajudando a desmontar preconceitos, padrões inalcançáveis e rotinas adoecidas? O que a Patagônia ou a Nike poderiam oferecer como estímulo para crianças e jovens largarem os vídeo games em nome dos esportes outdoor? Como a Lego ou a Mattel poderiam se aliar para pensarem em brinquedos analógicos irresistíveis? Como a Apple poderia colocar toda a sua competência em Design e UX para estimular jovens a se aventurarem coletivamente de um jeito saudável? Ou ainda, por que não, como as redes (anti) sociais que criaram boa parte do problema não puxam para si o desafio de se reinventarem em nome do bem da humanidade e de um lugar mais digno para suas marcas na história?
Bora trabalhar, turma?
Ouça aqui a música Vivo, de Lenine.