Estamos hiperpresenteando nossas crianças, e o impacto será no bolso delas

Pais e avós são os que presenteiam as crianças com maior frequência, seguidos de tios e tias

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Camila de Lira 6 minutos de leitura

Uma em cada 10 crianças brasileiras recebem 50 presentes por ano – datas comemorativas à parte. Mais da metade (54%) dos pais dizem que a compra de “mimos” para os pequenos acontece mensalmente, mas 60% deles admite que os filhos brincam sempre com os mesmos brinquedos.

Os números da pesquisa mais recente da fintech brasileira Pulpa mostram uma realidade que poucos gostam de admitir: estamos hiperpresenteando nossas crianças.

Além de estimular o consumismo – hábito que já tem consequências devastadoras para o meio ambiente – o ato de dar presentes em excesso cria um cenário falso de abundância, que dificulta o aprendizado sobre educação financeira.

“Hiperpresentear as crianças não é dar mais amor, é criar um contexto que vai pedir a conta no futuro”, diz Erica Fran, CEO e cofundadora da Pulpa, fintech que tem como objetivo ajudar pais e mães a guardar dinheiro para seus filhos.

Quando colocado na ponta do lápis, as 50 surpresas recebidas ganham um novo contorno, já que o ano só tem 52 semanas – contando com Natal, aniversário e Dia das Crianças, que são épocas diferenciadas para pais e filhos (e avós, que entram na dança como os segundos maiores presenteadores). Nesses três dias específicos, 92,3% das crianças recebem até 10 presentes.

Fonte: Pesquisa Educação Financeira Infantil/ Pulpa

“Ela está recebendo mais do que consegue utilizar. Sem contar que não ajuda a ensiná-la a priorizar, a fazer escolhas e a valorizar o que tem, mas sim a ter mais do que precisa. Esse é um hábito que a criança vai levar na vida adulta”, diz Erica.

Para pais e avós, o caminho também é custoso. O valor médio dos presentes dados no dia a dia é de até R$ 200. Nas datas comemorativas, 90% das crianças recebem presentes que custam até R$ 300 .

Isso significa algo em torno de R$ 1,2 mil gastos em cada data especial. Somando os regalos mensais, pode chegar a um total de R$ 500 por mês. O gasto poderia se transformar em investimento, que chegaria a até R$ 285 mil quando a criança chegasse aos 18 anos. “E tem mais significado do que muitos presentes que ela poderá nem usar”, aponta a CEO da Pulpa.

Fonte: Pesquisa Educação Financeira Infantil/ Pulpa

DINHEIRO É TABU & POUPANÇA É DIFÍCIL

O que fazer, então? Deixar de dar presentes? Não exatamente. A alternativa sugerida pela Pulpa é um “meio termo”. A startup torna possível reverter parte do dinheiro que seria gasto em brinquedos para uma conta de previdência privada conectada ao CPF da criança. O que, inclusive, torna mais simples para os pais e responsáveis criarem o fundo de investimento.

Anselmo Massad, gerente de marketing da Conta Azul, pai de duas crianças e usuário da Pulpa, comenta que já tinha aberto um fundo quando a filha mais velha, que tem oito anos, nasceu. Mas viu problemas quando o filho (que agora tem três anos) veio ao mundo. “Foi complicado abrir conta para ele em bancos. É difícil até mesmo em bancos digitais”, comenta.

Para ele, guardar economias para os filhos é uma forma não só de planejar o futuro, mas de abrir parte da conversa sobre como eles lidam com dinheiro no momento atual.

“Tentei falar sobre poupança com minha filha mais velha, mas ainda fica algo muito distante para ela aprender. Ao mesmo tempo, é uma forma de se falar de educação financeira. Não é a única dimensão. A criança entende desde cedo que o dinheiro pode ser limitador ou facilitador”, explica o pai.

Na opinião de Erica, a educação financeira deveria ser um tópico de discussão dentro dos lares. “Muitos pais ensinam as crianças a nadar por medo de que, em algum momento, elas possam entrar no mar ou numa piscina e se afogar. Mas na hora de falar sobre disciplina e responsabilidade com dinheiro, não ensinam”, aponta.

O resultado dessa postura aparece logo nos primeiros salários que os jovens recebem: muitos se endividam. No Brasil, dados do Serasa mostram que 13% dos jovens entre 18 e 25 anos não pagam as dívidas dentro dos prazos.

Outro dado do Serasa: 47% dos jovens da geração Z, ou seja, que nasceram da segunda metade dos anos 90 até o início dos anos 2010, não controlam as finanças. Um em cada cinco alega não ter conhecimento e a mesma proporção admite não ter hábito e disciplina. “Estamos jogando os jovens no mar sem saber nadar”, aponta Erica.

POR QUE “EU QUERO”

Parte da conversa sobre educação financeira, na verdade, não é nem uma conversa, são hábitos do dia a dia. Massad comenta que tenta explicar para os filhos a razão de não comprar certos itens e não deixa a justificativa ser apenas “não tem dinheiro”.

Pesquisa do Google mostra que dinheiro é uma fonte de conflitos e tabus nas famílias.

Outro ponto que ele tenta entender é o que as crianças querem dizer quando falam que querem algo. “Perguntamos se eles vão usar mesmo. Por que que eles querem o brinquedo se acham bonito. Lembramos que tem outros em casa. Até entendermos o que há por de trás do ‘eu quero’”, disse o pai de dois.

“Educação financeira não é só fazer juros compostos, mas é sobre comportamento e hábitos”, indica Erica, ao ressaltar a importância de manter o diálogo aberto sobre dinheiro e fugir do grande tabu da cultura brasileira, que é exatamente falar sobre os ganhos e perdas financeiras. Pesquisa do Google mostra que dinheiro é uma fonte de conflitos e tabus nas famílias, a ponto de não ser um tema abordado por parte da população.

“O mais desafiador de tratar desse tema é que a gente mesmo não lida com dinheiro de forma bem resolvida o tempo todo. Nos colocamos também como pessoas que estão aprendendo, afinal, as crianças também mudam o tempo todo”, admite Anselmo.

MILLENNIALS VIRARAM PAIS

Há um contexto que explica o hiperpresenteamento das crianças. Nos anos 1980, a média de filhos por família no Brasil era quatro; nos anos 1990, a taxa caiu para três; nos anos 2000, chegou a dois; e hoje fica entre 1 e 2. “Estamos em um país adulto. Antes, eram oito sobrinhos e dois tios, agora é o contrário. E os adultos ficam muito atentos a essas únicas crianças”, explica Erica.

Pais e avós são os que presenteiam com maior frequência, seguidos de tios e tias e dos padrinhos e madrinhas. Para 72,4% dos familiares responsáveis pelos pequenos, seria preferível que fossem dados mais experiências do que brinquedos de presente. A Pulpa mostrou, no entanto, que são os brinquedos, principalmente os educativos, os campeões das surpresas.

“Muitos querem ter a certeza de que a criança saiba quem foi que deu”, diz Erica. Para tentar driblar essa barreira, a Pulpa criou uma funcionalidade de vídeo que funciona como uma “cápsula do tempo”.

Assim, cada pessoa que deposita o dinheiro no fundo criado para a criança pode deixar um recado que só será visto quando a conta for utilizada. “É uma relação diferente com o dinheiro que está sendo criada, que mostra que guardar é importante e que a segurança financeira pode vir de grão em grão”, finaliza Erica.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais