Neurotecnologia: precisaremos de leis contra invasão de pensamentos?

Interfaces cérebro-computador têm gerado debates sobre os limites das tecnologias que interagem com o sistema nervoso

Créditos: Marharyta Marko/ Eoneren/ iStock

Parker Crutchfield 4 minutos de leitura

Sócrates, o filósofo da Grécia antiga, nunca colocou suas ideias no papel. Ele dizia que a escrita compromete a memória – que nada mais é do que uma lembrança de algum pensamento anterior. Comparado a pessoas que discutem e debatem, os leitores, de acordo com ele, são “ouvintes de muitas coisas, mas não aprendem nada; parecem oniscientes, mas, na verdade, sabem pouco.”

Essa visão pode parecer peculiar, mas a preocupação central é atemporal: o medo de que a tecnologia possa prejudicar o pensamento. Para muitos, as neurotecnologias parecem especialmente ameaçadoras, apesar de ainda estarem em estágio inicial.

Em janeiro de 2024, Elon Musk anunciou que sua empresa Neuralink havia implantado um chip no cérebro de um humano – embora tenha realizado tal feito bem depois de seus concorrentes. Em dois meses, o voluntário já conseguia jogar xadrez apenas com seus pensamentos.

As interfaces cérebro-computador, conhecidas como ICCs, têm gerado debates legítimos sobre os limites das tecnologias que interagem com o sistema nervoso.

Nossos pensamentos são, em grande parte, produtos dos pensamentos e ações de outros.

Um dos princípios dos neurodireitos é a ideia de que todas as pessoas têm o direito fundamental de determinar o estado de seu cérebro e quem pode acessar essas informações, da mesma forma que têm o direito de determinar o que é feito com seus corpos e propriedades. Isso é frequentemente comparado à “liberdade de pensamento”.

Muitos especialistas em ética e formuladores de políticas consideram esse direito à autodeterminação mental tão fundamental que nunca é aceitável violá-lo e defendem que as instituições devem impor limites rígidos à neurotecnologia. Mas proteger a mente não é tão simples quanto proteger corpos e propriedades, como minha pesquisa sobre direitos neurais sugere. 

PENSAMENTOS VERSUS COISAS

Criar regras para proteger o direito de uma pessoa determinar o que é feito com seu corpo é relativamente simples. O corpo tem limites claros. Normalmente, é bastante fácil reconhecer violações a esse direito.

O mesmo se aplica à propriedade. Proteger o corpo e a propriedade são algumas das razões pelas quais as pessoas se unem para formar governos. Geralmente, podemos desfrutar dessas proteções sem limitar a forma como os outros desejam viver suas vidas.

A dificuldade em estabelecer direitos neurais, por outro lado, é que, ao contrário de corpos e propriedades, cérebros e mentes estão sob constante influência de forças externas. Não é possível cercar a mente de uma pessoa para que nada entre.

Crédito: Rawpixel

Nossos pensamentos são, em grande parte, produtos dos pensamentos e ações de outros. Tudo, desde a maneira como percebemos cores e formas até nossas crenças mais fundamentais, é influenciado pelo que os outros dizem e fazem. A mente humana é como uma esponja, ela absorve tudo. Leis podem ser capazes de filtrar algumas coisas, mas não podem impedir o cérebro de reter outras.

Mesmo que isso fosse possível – se houvesse uma maneira de regular as ações das pessoas para que não influenciassem os pensamentos dos outros de forma alguma –, elas acabariam nos impedindo de praticar qualquer ação.

Se não podemos influenciar os pensamentos dos outros, então nunca poderíamos sair de casa, pois ao fazer isso estaríamos fazendo com que as pessoas pensassem e agissem de determinadas maneiras. E já que a internet amplia o alcance das nossas ações, também não poderíamos “curtir” uma postagem no Facebook, escrever uma avaliação de produto ou comentar em uma notícia.

Em outras palavras, tentar proteger esse aspecto da liberdade de pensamento – o direito de se proteger de influências externas – pode acabar entrando em conflito com a liberdade de expressão.

NEUROTECNOLOGIA E CONTROLE

Mas há outra preocupação em jogo: a privacidade. As pessoas podem não ser capazes de controlar completamente o que entra em suas mentes, mas devem ter controle sobre o que sai – e alguns acreditam que as sociedades precisam de leis de “direitos neurais” para garantir isso. A neurotecnologia representa uma nova ameaça à nossa capacidade de controlar quais pensamentos revelamos aos outros.

Críticos temem que, conforme esse campo se desenvolve, seja possível extrair informações sobre a atividade cerebral, independentemente de alguém querer ou não divulgá-las. Hipoteticamente, elas poderiam um dia ser usadas em uma variedade de contextos, desde pesquisas para novos dispositivos até nos tribunais.

todas as pessoas têm o direito fundamental de determinar o estado de seu cérebro e quem pode acessar essas informações.

No entanto, eu argumentaria que pode não ser necessário, ou mesmo viável, nos proteger da neurotecnologia inserindo informações em nossos cérebros. Em parte, porque acredito que as pessoas tendem a superestimar a diferença entre a neurotecnologia e outros tipos de influência externa.

Já existem proteções sobre corpos e propriedades, que poderiam ser usadas para processar qualquer um que tente forçar a aplicação desse tipo de tecnologia em outra pessoa.

Como diferentes sociedades vão lidar com esses desafios é uma questão em aberto. Mas uma coisa é certa: com ou sem neurotecnologia, nosso controle sobre nossas próprias mentes já é menor do que muitos de nós gostamos de pensar.

Este texto foi reproduzido do The Conversation sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.


SOBRE O AUTOR

Parker Crutchfield é professor de ética médica, humanidades e legislação na Universidade Western Michigan. saiba mais