Diversidade é inegociável

No Brasil, políticas afirmativas não podem ser encaradas como favores institucionais ou discursos ajustáveis conforme a conveniência política ou econômica

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Silvana Bahia 4 minutos de leitura

Escrevo esta coluna da Cidade do Cabo, na África do Sul, onde vou passar as próximas semanas. Acabei de chegar, mas já tem sido muito especial: é a primeira vez que piso no continente africano.

Ainda estou me acostumando com o fuso, com a divisão do tempo de trabalho aqui e no Brasil, mas já vi coisas lindas e conheci pessoas maravilhosas.

É curioso, mas, mesmo estando aqui há pouco tempo, sinto um peso constante ao meu redor. A força do apartheid ainda é intensa. Embora esse regime de segregação e violência tenha sido oficialmente extinto em 1994, suas marcas seguem evidentes em cada esquina.

As cidades sul-africanas foram projetadas para separar e, em muitos aspectos, continuam assim. Mudar algo tão enraizado exige tempo, coragem, esforço coletivo e, acima de tudo, intencionalidade.

E então leio as notícias – não daqui, mas lá do norte, de um país cuja história racial tem muitos pontos de encontro com a da África do Sul.

Nos Estados Unidos, que há pouco mais de meio século ainda proibiam pessoas negras de votar e só nos anos 1960 começaram a construir políticas para tentar corrigir suas desigualdades históricas, agora dão passos largos para desmantelá-las.

Nos últimos meses, grandes empresas e instituições vêm, nos EUA, encerrando iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI), enfraquecendo compromissos assumidos no passado e expondo a fragilidade desses avanços. É um retrocesso triste e preocupante, que tem a questão racial na centralidade desse processo.

Nossa jornada no Brasil é outra. Há semelhanças, certamente, mas o racismo se estruturou de forma igualmente violenta: nos salários injustos, no acesso restrito à educação, no mercado de trabalho excludente, na concentração da população negra nas piores condições socioeconômicas do país.

O racismo assume diferentes formas, embora sempre perversas, em cada sociedade.

A diferença é que consolidamos políticas afirmativas que estão conseguindo resistir ao tempo. As cotas raciais, aprovadas por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, transformaram o perfil das universidades e abriram portas no mercado de trabalho. O Sistema Único de Saúde (SUS), um dos mais abrangentes do mundo, garante acesso à saúde para milhões de brasileiras e brasileiros.

E aqui vale lembrar: pessoas negras, que representam 56,7% da população brasileira, ainda compõem cerca de 71% das que vivem em situação de pobreza. É por isso que políticas de diversidade não são algo que governos e empresas possam simplesmente “considerar” – são o mínimo necessário para mitigar os efeitos de séculos de exclusão.

O que está acontecendo nos Estados Unidos deve servir como alerta, não como estímulo. O Brasil, pelo contrário, precisa fortalecer sua trajetória, aprofundando e expandindo políticas públicas que combatam desigualdades históricas.

políticas afirmativas para equidade de gênero e raça
Crédito: Fast Company Brasil

É hora de olhar para nós mesmos e para outros países do Sul Global em busca de referências. Quando falamos em equidade racial, o aprendizado deve vir das resistências: os movimentos que enfrentaram o apartheid na África do Sul, as lutas que fizeram com que o Brasil avançasse nos últimos anos.

Se há algo a importar dos Estados Unidos, é a noção de que conquistas sociais nunca são definitivas. Temos que defendê-las dia a dia.

O racismo assume diferentes formas, embora sempre perversas, em cada sociedade. As respostas para combatê-lo, portanto, precisam partir de cada uma dessas realidades.

Mas, seja onde for, diversidade, equidade e inclusão não podem ser encarados como favores institucionais ou discursos ajustáveis conforme a conveniência política ou econômica. São compromissos inegociáveis internacionalmente, estabelecidos na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, em Durban, aqui na África do Sul, em 2001

A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS

A boa notícia é que tem muita gente comprometida. Se em Durban os países assumiram a responsabilidade de adotar políticas para a equidade racial, isso não pode ser ignorado pelos governantes. Pelo contrário, precisa se transformar em políticas de Estado.

Ao mesmo tempo, as empresas e organizações da sociedade civil têm um papel fundamental a partir da ampliação das iniciativas de DEI.

Este mês, num gesto muito importante, estatais federais reafirmaram seu compromisso ao fortalecer o Pacto pela Diversidade, Equidade e Inclusão. O plano de ação para 2024-2025 inclui diagnóstico de diversidade, capacitação de lideranças e metas concretas para ampliar a representatividade dentro das empresas públicas.

conquistas sociais nunca são definitivas. Temos que defendê-las dia a dia.

Além disso, no Olabi, trabalhamos lado a lado com organizações que desejam desenvolver políticas e ações concretas de diversidade, equidade e inclusão. Vemos de perto o impacto real desse esforço e sabemos que muitas pessoas dentro dessas instituições querem transformar o mercado e construir uma sociedade mais justa.

E, se a empresa em que você trabalha ainda não tem uma política estruturada de diversidade ou está hesitante em avançar nesse tema, saiba que seu papel – independentemente de cargo, raça ou gênero – pode fazer a diferença.

O Olabi lançou no ano passado uma plataforma gratuita voltada justamente para ajudar profissionais de diferentes áreas a disseminar práticas de DEI de forma acessível e prática.

A hora que o mundo recua é quando mais precisamos avançar. Que nossa resposta seja o compromisso e a resistência – porque justiça social não dá para adiar.


SOBRE A AUTORA

Silvana Bahia é codiretora executiva no Olabi – organização dedicada a diversificar a cena de tecnologia e inovação no Brasil. Fellow ... saiba mais