5 perguntas para Guilhermina de Paula, fundadora do OcupaTrans

Crédito: Fast Company Brasil

Camila de Lira 6 minutos de leitura

A 71ª edição do Cannes Lions International Festival of Creativity, um dos principais eventos de criatividade do mundo, começa hoje. E Guilhermina de Paula está lá, liderando uma ação inédita no festival: uma comitiva de mulheres trans brasileiras na Croisette. A atividade faz parte do OcupaTrans, projeto liderado pela executiva, que amplia a participação de pessoas trans em espaços do audiovisual.

O projeto, apoiado pela produtora de áudio para publicidade Pingado Áudio, foi escolhido entre mais de 300 inscrições de 52 países pelo programa Equidade, Representatividade e Acessibilidade (ERA) do Cannes Lions. De todos, foi o único a levar a temática para os organizadores do festival. 

Guilhermina é travesti e passou por um longo caminho até chegar no mercado publicitário, em 2021. Desde que começou a participar de eventos do mercado, se incomodou com a falta de mulheres trans, homens trans e pessoas não-binárias nesses espaços.

No ano passado, ela fundou o OcupaTrans com o objetivo de criar comitivas para dar visibilidade e oportunidade para esses profissionais nos lugares de discussão e destaque.

Esse é o primeiro ano de Guilhermina em Cannes. Confira a entrevista.

FC Brasil – Em 18 meses, o OcupaTrans já participou de três festivais de criatividade. Como o movimento começou? 

Guilhermina de Paula – Comecei a minha jornada no audiovisual em 2021, quando festivais e eventos estavam todos parados. Quando eles retomaram em 2022, comecei a frequentar os espaços e perceber a falta de outras pessoas trans nesses lugares. Eu era uma das únicas. O OcupaTrans surgiu em setembro de 2023, a partir de um luto. Perdi a minha melhor amiga de infância, vítima de transfobia.

Nesse momento, repensei como usar os meus privilégios para ajudar as meninas que estavam na rua, que sofrem todos os tipos de violência. Juntando esses dois fatores, lembrei dos festivais e eventos. 

Aproveitei o festival do Clube de Criação que aconteceu no ano passado e pedi ingressos para pessoas entrarem de forma gratuita. A organização doou 20 ingressos. Depois teve o Whext, em que juntamos agências, produtoras e pessoas físicas para comprar 60 ingressos. 

Lu Novelli, sócia da Pingando Áudio, e Guilhermina de Paula, fundadora do OcupaTrans (Crédito: Jomo Studio)

Apresentamos o projeto para o Simon Cook [CEO do Cannes Lions International Festival], que nos apresentou para o programa de Equidade, Representatividade e Acessibilidade (ERA).

Antes de sair o resultado oficial, eles pediram para ver mais do nosso projeto e ficaram impressionados porque era o único focado na população trans, na inclusão desses corpos, desses grupos subrepresentados. 

Ganhamos seis ingressos. Selecionamos pessoas de diferentes áreas da publicidade – tem diretor de cena, diretor de arte, de criação. Todas essas pessoas vieram da periferia. O critério de seleção também vê recortes sociais.

Muitas pessoas cisgêneras que têm acesso a esses festivais banalizam esses eventos. Enxergam como um lugar para tomar cerveja e ver os amigos, e não um lugar de potências, para abrir o horizonte.

Mas, para quem não está nesses ambientes, a presença significa oportunidade, enriquece repertório, aumenta conceitos, amplia networking. É muito enriquecedor, é um impulsionamento para a carreira.

Acompanhe aqui a cobertura completa do festival.

FC Brasil – Vocês foram escolhidos entre mais de 300 inscrições no programa ERA. Quais as suas expectativas para o evento?

Guilhermina de Paula - Fizemos um filtro para assistir às palestras de DEI [diversidade, equidade e inclusão] e também encontrar com pessoas que trabalham com essa temática. Quero entender como é o cenário fora daqui para poder aplicar dentro do país.  

Para mim, estar em Cannes significa mudar a narrativa. Significa poder contar as nossas histórias e ter a nossa voz.

Não queremos só levar as pessoas, queremos dar suporte. Compartilhamos buttons com os pronomes de cada participante, organizamos pontos de encontro e estamos em grupos para conversar sobre o festival. Não queremos que elas se sintam deslo- cadas e desconfortáveis. 

Estou fazendo um bolão da viagem para ver quando veremos as primeiras pessoas trans no Pallais. Estou querendo quebrar a minha cara, quero encontrar mais pessoas, mas sei que não vamos. Nos grupos de participantes que estou, só tem a gente.

FC Brasil – Em 2023, ocorreram 155 mortes de travestis, mulheres trans e homens trans no Brasil. Somos o país que mais mata pessoas trans do mundo. Nesse contexto, o que significa ter as vozes ouvidas em espaços como Cannes e festivais de criatividade?

Guilhermina de Paula – Você esqueceu de falar que o Brasil está nessa posição há 15 anos. Para mim, estar em Cannes significa mudar a narrativa. Significa poder contar as nossas histórias e ter a nossa voz. Temos interesses de encontrar pessoas desses setores para ter contato com os tomadores de decisão.

Queremos fazer com que elas comecem a mudança de dentro para fora. Quando enxergarem que estamos no maior festival de criatividade do mundo, que tinha uma travesti lá, ela vai ver que a travesti também pode trabalhar na empresa.

Ajuda a construir novos cenários, um novo imaginário social. Da mesma forma que a publicidade construiu imaginários sociais nas últimas décadas, construiu padrões, ela consegue trabalhar o imaginário para preparar a sociedade para aceitar que pessoas trans consigam ser C-Level. 

Existe uma hipocrisia no mercado profissional. De manhã eles falam que para a gente não tem trabalho, mas de noite estão passando de carro buscando a gente para ter uma horinha de prazer. Na hora de tirar da rua, não tiram.

Precisamos quebrar essa roda do sistema, ressignificar e trabalhar o imaginário social, mostrar que pessoas trans e travestis podem, sim, ocupar espaços, trabalhar, ter carreiras executivas, contar suas narrativas. Queremos contar as nossas histórias por meio das nossas conquistas, não apenas compartilhando nossas dores.

FC Brasil – De acordo com o Observatório da Diversidade na Propaganda, até o final do ano as agências brasileiras precisam garantir que chegaram em 1% de pessoas trans no quadro de funcionários. Como o mercado publicitário pode sair do discurso e passar para a ação?

Guilhermina de Paula – Apesar de ser uma porcentagem tão pequena, se as agências continuarem da maneira que estão, não chegarão em 1%. Até para fazer a pesquisa de quem participaria do festival, tivemos dificuldade de achar travestis trabalhando formalmente no mercado. Estamos falando de menos de 1%.

Precisamos mostrar que pessoas trans e travestis podem ocupar espaços, trabalhar, ter carreiras executivas, contar suas narrativas.

Sem contar que estamos vendo cortes em projetos de impulsionamento de carreiras de diversidade e menos investimento no setor de diversidade das campanhas. A Parada LGBTQ só teve 17 patrocinadores em 2021. No ano passado foram mais de 22.

Cada vez menos as pessoas estão investindo nessa temática, principalmente quando o assunto são pessoas trans. Tento não ser pessimista, mas a realidade é diferente desse propósito. 

Acho difícil mesmo de chegar em 2% em 2029. É mais real que chegaremos a 1% até lá. Talvez daqui a cinco anos teremos um número maior de profissionais capacitados sendo considerados como potências nas empresas. Até lá, ficaremos nessa incerteza, contando com a boa vontade das pessoas de fazer o mínimo. 

FC Brasil – O que significa inovação para você? Qual futuro está construindo?

Guilhermina de Paula – O OcupaTrans é símbolo forte de inovação. É o único projeto em 300 do mundo inteiro que fala disso. Para o futuro, apesar do cenário pessimista, espero que a gente expanda para outros setores e não fique limitado apenas a ir em eventos, mas palestrar neles, ser destaque neles.

Queremos trazer as pessoas para dentro das escolas, das universidades, garantir que estão se formando. Garantir que tenham acesso. E também que as empresas tenham as portas abertas para essas pessoas. Precisamos ocupar esses espaços que, durante toda a nossa história, nos foram negados.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais