Bill Gates quer salvar o mundo – igual a vários outros bilionários antes dele
Gates reproduz a ideia de que “os bilionários sabem o que é melhor”

Com o lançamento de seu novo livro, "Código-fonte: como tudo começou" (lançado no início de fevereiro), Bill Gates tem recebido uma série de elogios em matérias que tentam diferenciá-lo dos “outros bilionários da tecnologia” – especialmente daqueles que, recentemente, têm se alinhado com a extrema direita.
Mas, mesmo que não esteja usando a tecnologia para alimentar a polarização política, Gates compartilha uma característica comum com muitos de seus pares, antigos e atuais: a visão paternalista de que sua fortuna – não importa como tenha sido construída – é algo positivo, já que está tentando “salvar o mundo” com ela.
Essa visão tem raízes antigas. Em 1889, o magnata do aço Andrew Carnegie – um dos homens mais ricos da história dos Estados Unidos – apresentou esse pensamento no ensaio “O evangelho da riqueza”.
Naquele contexto, diante do avanço de ideias progressistas, Carnegie defendia que a concentração de riqueza trazia benefícios para a sociedade: estimulava a inovação, a eficiência e o crescimento econômico.
De quebra, permitia ações filantrópicas como bônus. Na lógica dele, más condições de trabalho e degradação ambiental seriam um preço aceitável para que milhares de bibliotecas fossem construídas. Afinal, havia "bilionários do bem".
Difícil não notar as semelhanças com o discurso atual. Muitos líderes da tecnologia seguem justificando suas fortunas – e a desigualdade que elas perpetuam – com argumentos parecidos.
O investidor Marc Andreessen, por exemplo, fala abertamente sobre um “acordo” entre o Vale do Silício e a sociedade que diz que os inovadores devem ter liberdade para enriquecer, porque seus atos de generosidade futura compensarão os danos causados.
Andreessen afirma que a quebra desse pacto não escrito por parte do ex-presidente dos EUA Joe Biden foi o que o levou – e a outros líderes do setor de tecnologia – a uma guinada à direita e ao apoio ao também bilionário Donald Trump.
FILANTROPIA COMO FORMA DE MELHORAR A IMAGEM
Mas, entre todos os filantropos que seguem esse “acordo”, Gates é o principal exemplo, apesar das muitas críticas a esse modelo. A ideia de que o sucesso nos negócios confere a alguém tanto o direito quanto a competência para resolver questões sociais complexas é, por si só, problemática.
Além disso, o modelo de Carnegie funciona como um manual descarado de “filantropia-washing” e mina a democracia ao concentrar o poder de decisão nas mãos de bilionários não eleitos, em vez de instituições públicas.
Assim como Carnegie, Gates mergulhou na filantropia depois de enfrentar duras críticas sobre sua atuação nos negócios. Há 25 anos, a Microsoft foi processada pelo governo dos EUA por práticas anticompetitivas, como forçar a instalação do navegador Internet Explorer em seus produtos.
Gates compartilha a visão paternalista de que sua fortuna é algo positivo porque ele está tentando "salvar o mundo".
Quando os vídeos do depoimento de Gates vieram a público, sua imagem sofreu um grande baque. Ele parecia evasivo, arrogante, evitava reconhecer fatos básicos, fingia não entender palavras como “preocupação” e “apoio” e fugia de qualquer responsabilidade.
Naquela época, ele e outros gigantes da tecnologia eram conhecidos como “os sovinas digitais”, por doarem pouco ou quase nada. Mas, aos poucos, Gates percebeu que a filantropia poderia ser uma forma não só de recuperar, mas de melhorar sua reputação.
Hoje, a Fundação Gates é amplamente reconhecida por seu trabalho – desde o financiamento de vacinas contra poliomielite, rotavírus e Covid-19 até projetos de combate à malária e ao HIV, que já teriam salvado mais de 100 milhões de vidas.
"BILIONÁRIOS DO BEM" - PARA QUEM?
Ainda assim, como no caso de Carnegie, seu legado não está livre de críticas, principalmente por seguir uma lógica seletiva e autoritária, baseada na crença de que bilionários sabem o que é melhor.
Embora o interesse de Carnegie em construir bibliotecas e museus fosse louvável, ele refletia seus próprios vieses e prioridades, e não as necessidades das comunidades que ele pretendia atender.
Na época, as comunidades de trabalhadores e imigrantes, que sofriam com as práticas trabalhistas de suas empresas, muitas vezes tinham pouco acesso ou interesse por essas instituições, e teriam se beneficiado muito mais com proteções trabalhistas, moradia ou infraestrutura de saúde pública.

Alguns dos maiores fracassos da Fundação Gates revelam uma abordagem impositiva, que reflete muito mais os interesses pessoais de Gates do que soluções desenvolvidas de forma colaborativa e democrática – e, por isso, os resultados são muitas vezes questionáveis.
Na África, por exemplo, a fundação promoveu o agronegócio e o uso de sementes geneticamente modificadas em larga escala, contrariando o que defendem muitos agricultores locais, que preferem práticas sustentáveis e de menor escala. Diversos relatórios mostram que essa estratégia não garante segurança alimentar.
No caso da crise climática, Gates também tem apostado em soluções polêmicas – como a captura direta de carbono e a geoengenharia – que exigem investimentos altíssimos, em vez de priorizar ações mais acessíveis e voltadas à justiça climática.
POR QUE TÃO POUCOS TÊM TANTO?
O nível de arrogância exibido por Gates, Musk e Andreessen ao justificar suas ações não era visto desde a Era Dourada. Mas não podemos esquecer que há uma razão pela qual os industrialistas do século 19 eram conhecidos como “barões ladrões”.
Nosso tempo tem paralelos claros com a era de Carnegie: um momento de transformações tecnológicas – na indústria, na comunicação, no transporte – que mudaram profundamente a vida das pessoas, mas também geraram desigualdade extrema e o surgimento de uma elite ultrarrica.
Gates mergulhou na filantropia depois de enfrentar duras críticas sobre sua atuação nos negócios.
Havia também um grande impasse político e uma forte resistência à imigração. Com o tempo, a indignação popular diante das injustiças da chamada Era Dourada deu origem à Era Progressista.
Agora, a pergunta que fica é: será que a atual crise global – que envolve mudanças climáticas, desigualdade econômica e desafios de saúde pública – vai ser capaz de gerar o impulso necessário para uma mudança real na forma como vemos a riqueza e sua origem?
Diante da possibilidade de um terceiro mandato de Trump, pode até parecer tentador confiar em Gates e seus colegas “bilionários do bem”. Mas uma nova Era Progressista só será possível se começarmos a questionar por que aceitamos que uma única pessoa concentre tanto poder e riqueza.