Venderam a curadoria, e o que ganhamos com isso?
2023 tem sido o ano dos summits, já reparou? Em tempos pós-pandêmicos, os eventos voltaram com tudo e, com eles, a necessidade de autenticidade e relevância do conteúdo nunca foi tão crítica. Diante da demanda reprimida e da comercialização massiva dos eventos corporativos, a curadoria figura como uma arte delicada que está sob forte pressão.
Tanto em eventos como na proliferação do chamado branded content, parece que o compromisso editorial e a curadoria independente experimentam uma encruzilhada. As linhas entre a qualidade e as maneiras de rentabilizar o modelo de negócios estão cada vez mais borradas, criando uma relação desequilibrada onde, frequentemente, o público é quem sai perdendo.
QUEM VEMOS NO PALCO
Uma curadoria bem-sucedida propõe conexões inovadoras, incita novas sinapses e proporciona um ambiente onde o aprendizado e o crescimento são inevitáveis. Para isso, é preciso assumir riscos e sair do lugar comum.
No coração da atividade, encontramos um processo que vai muito além de selecionar temas ou palestrantes. Trata-se de construir uma experiência enriquecedora e gratificante para a audiência, tecendo uma trilha equilibrada por perspectivas, debates e troca de ideias.
Até pouco tempo atrás, patrocinadores se contentavam em comprar cotas, inserir suas marcas e promover ações em estandes. Hoje, eles anseiam por mais. Querem assumir o protagonismo como fontes de conteúdo. Por outro lado, produtores também passaram a vender o espaço no palco, como uma contrapartida extra aos sponsors, em mais uma maneira de atrair capital e elevar a rentabilidade dos eventos.
Mas isso tem um preço alto: perdemos em qualidade e na diversidade dos discursos. Assistimos a um desfile repetitivo de vozes e mensagens semelhantes, narrativas combinadas e falta de originalidade. Percebemos que a espontaneidade, que dá vida aos eventos presenciais, vai sendo minada.
As linhas entre a qualidade e as maneiras de rentabilizar o modelo de negócios estão cada vez mais borradas, criando uma relação desequilibrada.
O excesso de cordialidade e a agenda "chapa branca" eliminam a naturalidade que torna os encontros especiais. Mesmo as atrações principais, estas sim enriquecedoras, acabam sendo mais ou menos as mesmas e servem como trampolim reputacional para seus contratantes.
De onde veio isso? Foi uma jogada de alguma agência de relações públicas? Uma ideia brilhante de algum produtor? O resultado é um caleidoscópio de monotonia, com a repetição de frases de efeito, pouca provocação, pitchs publicitários ou narrativas institucionais.
Por que alguém deveria subir no palco para falar algo que poderia estar numa campanha, ou simplesmente num release para a imprensa? O que aconteceu com a espontaneidade, a improvisação, a surpresa? Tudo isso foi engolido pela cortesia protocolar "chapa branca". E se tem uma coisa que mata o engajamento mais rápido do que a monotonia é o comportamento "chapa branca".
O desafio não está em como comercializar a curadoria, mas em resgatá-la e respeitá-la.
Outro ponto que merece atenção é que a comercialização do conteúdo limita os formatos de apresentação das ideias. Seguimos o mesmo modelo que remete ao teatro grego, onde uma ou mais pessoas ocupam o palco enquanto o público permanece passivo. E se explorássemos outros formatos para disseminar, trocar e circular ideias?
O grande problema disso tudo é que estamos fechando as portas para vozes e ideias interessantes, de fora do circuito, que não têm capital ou projeção para entrar nesse jogo.
Mesmo quando temos uma programação repleta de pessoas incríveis, acabamos ouvindo sempre a reciclagem de histórias repetidas, pois a dinâmica está regulada por interesses comerciais e as grandes mentes já distribuem suas ideias em outros canais e formatos, como podcasts, newsletters e redes sociais.
UM RESGATE
O desafio, portanto, não está em como comercializar a curadoria, mas em resgatá-la e em aprendermos a respeitá-la. É vital preservar a autenticidade e a relevância como princípios direcionadores na seleção do conteúdo para grandes encontros. Não se trata de competir por atenção, mas de agregar significado à vida das pessoas e construir ainda mais valor a partir disso.
Ao priorizar as experiências da audiência, o olhar autêntico coloca o consumidor/ participante no centro da matriz de decisões. O público se transforma de mero espectador passivo em participante ativo, oferecendo a oportunidade de se engajar, questionar e, mais importante, conectar-se com outros indivíduos e ideias.
Em muitos dos eventos de 2023, parte dos feedbacks mais ouvidos foi sobre a precariedade da experiência do usuário, ou seja, aquele que comprou ingresso na pessoa física.
É no design dessa experiência que os patrocinadores devem estabelecer relacionamentos duradouros com as pessoas. Tais ativações permitem que as marcas comuniquem seus valores não apenas por seus produtos ou serviços. Uma empresa que consegue se conectar com o público desta forma, estabelece uma ligação emocional que supera qualquer transação comercial.
A liderança das patrocinadoras não precisa (nem deveria) estar no palco, a não ser por histórias que inspirem legitimamente. Trata-se de uma relação de mão dupla: os produtores também podem deixar de comercializar os espaços de fala.
As marcas deveriam encontrar outros artifícios para afagar o ego de quem as lidera. O lugar das organizações está em criar contextos memoráveis – e viabilizar o melhor conteúdo é uma das alavancas para que isso aconteça. A ativação mais eficaz acontece quando uma marca cultiva conexões significativas dentro de uma situação criada por ela.
Assim, a marca passa de protagonista a facilitadora de uma experiência que consegue juntar pessoas e interesses. Afinal, as pessoas tendem a lembrar mais de como se sentiram a partir de uma experiência do que de um produto ou serviço.
Eventos precisam de um modelo econômico sustentável, claro. Não digo isso de forma ingênua. Os resultados podem ser surpreendentes para todos os stakeholders ao renunciar a uma fonte de receita imediata, em troca de um processo de construção mais profundo.
No jogo da comercialização excessiva, todos perdem. Por isso, precisamos de um novo compromisso que deixe a pressão sobre a curadoria de lado para focar no design de experiências reais, corajosas e autênticas.
*Parte do argumento para esse artigo surgiu justamente do encontro e da troca com Bia Guarezi, da Bits To Brands.