Hashtags, memes e zoeira sem fim. Ser fã no Brasil vira espécie de ativismo digital
Muito além do Oscar: fenômeno nas redes sociais, audiência brasileira engaja, viraliza e chama atenção de marcas e influenciadores

O sucesso do filme “Ainda Estou Aqui” no circuito de premiações internacionais revelou para o mercado norte-americano um talento brasileiro que conhecemos há anos. Não estamos falando de Fernanda Torres ou Selton Mello, mas sim da habilidade do brasileiro nas redes sociais.
Conectado, engajado e apaixonado, o público brasileiro tem o poder de gerar influência e criar conteúdos que viralizam nas mídias sociais. Um fenômeno que chama atenção de marcas e influenciadores dos Estados Unidos, que já perceberam o tamanho da repercussão quando mencionam o Brasil em suas postagens.
Uma foto da atriz Fernanda Torres rendeu ao perfil da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas mais de 2,9 milhões de curtidas e 885 mil comentários. Um nível de engajamento cinco vezes maior do que a média das publicações da página no Instagram.
Já a edição deste ano do Globo de Ouro teve alta de 124% nas menções nas redes sociais e alta de 52% de impressões nos canais digitais, em comparação com a premiação do ano passado.
A campanha não oficial por Fernanda Torres está longe de ser um caso isolado. Quem não se lembra da foto de Gabriel Medina, tirada por Jerome Brouille nas Olimpíadas de Paris? A imagem que mostra o surfista pulando uma onda em Teahupoo foi escolhida como uma das melhores dos jogos e se espalhou por causa da audiência brasileira.
Em entrevista à Fast Company Brasil, Brouille disse: “a imagem caiu no gosto dos brasileiros em minutos e ganhei milhares de seguidores no Instagram”.

Também durante os Jogos Olímpicos de Paris, a jogadora da seleção espanhola de futebol Jenni Hermoso viu o poder dos brasileiros nas redes sociais. A atleta criticou a seleção brasileira feminina depois de o país ganhar a vaga na final olímpica.
Os fãs não engoliram a opinião negativa e reagiram, em massa, nas suas redes. Duas das fotos fixadas no Instagram de Jenni receberam mais de 150 mil comentários em poucos dias, o que levou a atleta a se retratar e fazer uma pausa temporária nas redes.
No meio do ano passado, a tiktoker norte-americana Courtney Henning Novak compartilhou um review bem-humorado (e elogioso) do livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis. Courtney usava as redes sociais para compartilhar dicas de leituras com seus 10 mil seguidores.
O vídeo sobre Machado de Assis não só chegou a 1,4 milhão de visualizações e 225 mil curtidas, como viralizou por aqui de tal forma que Courtney foi convidada para eventos de literatura no Brasil. Para se ter uma ideia, hoje com 65 mil seguidores, 66% da sua base de audiência é brasileira.
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“Os fãs brasileiros têm uma característica única: a paixão extrapola o consumo passivo e se transforma em ativismo. No Brasil, ser fã é um ato coletivo, quase um movimento social. Se organizam, fazem mutirões, sobem hashtags, pressionam marcas e plataformas, e transformam sua devoção em resultados concretos”, afirma Gustavo Giglio, fundador da Coffee Hunter e consultor em entretenimento e negócios, iniciativa que busca e seleciona cafés de alta qualidade.
Giglio acompanhou o crescimento da CCXP de um evento de nicho para a maior feira focada no público nerd do mundo, com 287 mil pessoas. Ele explica que a intensidade do fandom brasileiro transparece online.
O “modelo brasileiro de engajamento” entrou no radar das marcas de entretenimento e dos artistas, que colocam o país no mapa de divulgação de turnês internacionais. “O Brasil virou um termômetro importante para tendências globais”, diz Giglio.
ÍNDICE BRAZUCA DE ENGAJAMENTO INTERNACIONAL (IBEI)
O engajamento pode ser um “softpower brasileiro”, segundo Christian Rôças (ou Crocas), CEO da Flint.me, hub de educação voltado para a creator economy. Ele chegou a criar um termo para falar sobre o fenômeno brasileiro nas redes: Índice Brazuca de Engajamento Internacional (IBEI). O IBEI é uma forma bem-humorada de mostrar o potencial que marcas e influenciadores têm para viralizar no Brasil.
Alguns números explicam a audiência brasileira nas redes. O país tem quase 150 milhões de usuários ativos nas principais mídias sociais. Só no Instagram são 134,6 milhões. Um pouco mais de 76% da base total de usuários de internet usam pelo menos uma plataforma de mídia social por mês.
O brasileiro passa, em média, 9 horas e 13 minutos por dia na internet, aponta relatório da Hootsuite. É o segundo país do mundo com maior tempo dedicado à web, perdendo apenas para a África do Sul. Desse total, 3 horas e 32 minutos são dedicados às redes sociais, 50,3% acima da média mundial, que é de 2 horas e 21 minutos. Em outras palavras, o brasileiro é cronicamente online.
O sucesso mundial de memes é indício de que o Brasil sabe mexer com os símbolos da linguagem online em nível mundial.
“Se, no passado, os brasileiros eram uma presença marcante no Orkut, hoje em dia são numerosos no WhatsApp, no Instagram, no Bluesky. O uso intensivo da internet e das redes sociais por brasileiros já se tornou um reconhecido traço nacional e, muitas vezes, é tratado de forma superficial e estereotipada ”, diz Tori Holmes, professora da Queen's University of Belfast, na Irlanda do Norte.
Tori é pesquisadora de cultura brasileira com foco em digital. Em alguns dos seus artigos, ela analisa momentos virais do país, como o fenômeno “cala boca, Galvão”, que tomou o Twitter em 2010.
“Não sei se poder é a palavra correta. Talvez influência ou visibilidade seja melhor. Com certeza, as ondas sobre temas e acontecimentos brasileiros, como essa da Fernanda Torres, têm a capacidade de chamar a atenção e mobilizar usuários.”
É VERDADE ESSE BILHETE: BRASIL, O PAÍS DOS MEMES
No começo de 2010,os brasileiros que participavam de jogos online começaram a ser conhecidos como “hue". O termo descrevia a forma do "português brasileiro" escrever a risada online, mas também era usado de forma pejorativa, para falar sobre como os brasileiros que estavam em fóruns de games se comportavam – compartilhando piadas e dando risadas até em situações que muitos consideravam sérias.
Logo depois, surgiram grupos chamados "HueBR", nos quais brasileiros se juntaram sob um único lema: “the zoeira never ends” – em tradução livre, “a zoeira nunca acaba”.
Acadêmicos se debruçam para entender porque o brasileiro faz tanto barulho online. Uma das explicações é a “cultura da zoeira”. Sem brincadeira. A internet replicou um fator autêntico do Brasil: o humor que não foge de controvérsias, protestos ou temas difíceis. Um humor auto irônico, que coloca a risada como alternativa diante da realidade.
O brasileiro passa 3 horas e 32 minutos por dia nas redes sociais, 50,3% acima da média mundial, que é de 2 horas e 21 minutos.
“A gente gosta de participar dos acontecimentos. No final, somos todos um bando de comentaristas de tudo, para o bem ou para o mal”, brinca Crocas, que ajudou a levar parte do nosso humor para o exterior por meio do Porta dos Fundos.
Quando entra na dinâmica das redes, a "zoeira” gera reações extremas e, logo, ganha alcance nos algoritmos. A audiência brasileira interfere, reflete e completa as redes sociais.
De acordo com o pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense Viktor Chagas, os circuitos sociais alimentam o Brasil como “exportador” de engajamento. “As plataformas digitais dependem dos brasileiros muito mais do que os brasileiros dependem delas”, diz Chagas.

Ele é responsável pelo “Museu de Memes”, maior base de dados acadêmicos sobre o assunto do mundo. Também escreveu dois livros sobre o assunto: "A Cultura dos Memes" (2020) e "A Cultura dos Memes no Brasil" (2024). Em seu escopo de pesquisa, Chagas estuda a interseção da cultura pop com a sociedade contemporânea brasileira.
O sucesso mundial de memes – como a imagem da atriz Renata Sorrah, ou trechos de vídeos de reação da cantora Gretchen – é indício de que a audiência do Brasil sabe mexer com os símbolos da linguagem online em nível mundial.
BRASILEIROS NAS REDES SOCIAIS: O CASE BLUESKY
Além de fiel, o público brasileiro online chama atenção porque não tem medo de testar novas ferramentas. "Nos acostumamos a utilizar tecnologias que não são nossas e torná-las parte do nosso cotidiano. Mas somos também absolutamente hábeis em migrar de contexto, quando isso se torna necessário", diz Chagas.
O brasileiro migrou do Orkut para o Facebook em menos de dois anos. E depois para o Instagram. O aplicativo ultrapassou os 30 milhões de usuários ativos no Brasil em 2015, três anos depois de ser liberado no Android.

Recentemente, a rede social BlueSky sentiu a onda brasileira. Devido ao bloqueio do X (ex-Twitter), a rede social de código aberto recebeu quatro milhões de usuários brasileiros em menos de 10 dias. Na plataforma, desenvolvedores do BlueSky responderam a esse entusiasmo postando em português. Um deles, Paul Frazee, chegou a usar o apelido “paulinho”.
Assim como o BlueSky, outras personalidades perceberam que a intensidade do usuário brasileiro nas redes sociais pode ser usada para a fama. Vincent Martella, conhecido por seu papel na série "Todo Mundo Odeia o Chris", conquistou uma legião de fãs.
"Percebendo seu apelo com o público brasileiro, Martella passou a produzir conteúdo direcionado para eles e veio ao Brasil mais de uma vez", comenta Renata Moniz, comunicadora, criadora de conteúdo e especialista em cultura pop.
"NÃO MEXE COM OS BRASILEIROS"
A história de Martella tem um outro lado. Ele ganhou apoio dos brasileiros porque o ator principal de “Todo Mundo Odeia o Chris”, Tyler James Williams, reclamou do tsunami de comentários em português que recebia em todas as suas publicações nas redes sociais.
Em 2016, Tyler publicou um vídeo pedindo para os brasileiros pararem com o "spamming” em seus posts. Anos depois, ele mostrou ao vivo que uma foto sua recebia centenas de comentários em português por segundo. Foi um mal entendido. Para mostrar o quanto gostavam de Tyler, comentavam frases de seu personagem na versão dublada de “Todo Mundo Odeia o Chris".

O mal estar abriu espaço para Martella. Ele elogiava, falava em português e respondia os comentários. “A paixão dos fãs brasileiros, quando não é correspondida, pode se tornar volátil. A mesma energia usada para impulsionar algo pode ser usada para o cancelamento”, comenta Gustavo Giglio.
Para Renata Moniz, não dá para subestimar a “passionalidade” da nossa audiência. Na corrida para o Oscar deste ano, a atriz principal do filme "Emília Perez", Karla Sofia Gascon, conheceu a voracidade do público brasileiro.
Antes de se complicar por conta de antigas postagens, Karla pediu para os brasileiros deixarem de lado o assédio em suas redes sociais. A atriz denunciou a “equipe de mídia social” de Fernanda Torres pela campanha de bullying virtual. Depois, retirou as queixas.
Fernanda Torres, por sua vez, está sendo descrita como “sensação viral” pela mídia estrangeira. Em entrevista à Variety, ela deixou claro: “o Brasil é uma potência na internet". A atriz indicada ao Oscar, que faz sucesso nas redes sociais bem antes de “Ainda Estou Aqui”, chama os memes de "forma superior de arte".
Quando o Brasil decide abraçar uma causa nas redes sociais, o mundo todo acaba prestando atenção – por bem ou por mal. A "zoeira" brasileira, antes vista com desconfiança, hoje é reconhecida como uma força capaz de influenciar tendências, impulsionar carreiras e, quem sabe, até alcançar um Oscar.