A natureza do erro e a atrofia da intuição

Crédito: Dario Xavier/ iStock

Fred Gelli 5 minutos de leitura

No final de semana passada, voltando de viagem, diante de um aparente engarrafamento no viaduto que dá acesso ao túnel Rebouças, minha mulher, que estava dirigindo, me perguntou: "o que eu faço? Encaro ou pego o caminho alternativo?".

Na hora eu disse "calma, vou olhar no Waze", mas era tarde demais. Ela pegou o caminho de baixo. Andamos 50 metros e o trânsito parou. Nessa hora, o trajeto abriu na tela e mostrou que mesmo engarrafado, o viaduto era a melhor opção.

Quando tinha uns 20 anos e queria saber se naquele dia iria ventar o suficiente para velejar de windsurf, eu olhava para o céu, via como estavam as nuvens, percebia o jeito que uma árvore perto da minha casa balançava, prestava atenção na temperatura e formava minha opinião sobre como seria aquela tarde.

Às vezes, quando a ideia era ir para Araruama, ligava para o seu Nelson, o segurança do condomínio da casa do meu avô, e ele, como bom pescador, me garantia: “pode vir! A nuvem tá presa no topo da montanha!” Hoje, o Windguru fornece com precisão o comportamento do vento com pelo menos uma semana de antecedência. 

Maravilhoso poder desfrutar da magia dos algoritmos nos ajudando em quase tudo. Mas, e se falta internet ou a bateria do celular acaba?

Por milhares de anos, exercitamos nossos sentidos e nossa capacidade cognitiva para ler os sinais da natureza, das pessoas e do céu. Combinados com nossa fé e imaginação, desbravamos o desconhecido, fundamos civilizações, transformamos terra em naves espaciais, construindo uma trajetória sem precedentes na história de 3,8 bilhões de anos da vida no planeta. Tudo a partir das decisões que tomamos. 

Com o tempo, ferramentas e acessórios foram refinando nossa capacidade de fazer as melhores escolhas. A bússola e o astrolábio aumentaram radicalmente nossas habilidades de navegação. O raio X e a ressonância magnética revolucionaram os diagnósticos e por aí vai. Mas, de alguma forma, o espaço da decisão continuava em nossas mãos. Para o bem e para o mal. Até agora. 

Se hoje já não vale mais a pena discutir com o Waze, ou com o Tinder (como era pré-histórico ficar enchendo a cara na balada na esperança de esbarrar com a cara metade!), isso fará ainda menos sentido com o boost que invade nossas vidas com a inteligência artificial.

Maravilhoso poder desfrutar da magia dos algoritmos. Mas, e se falta internet ou a bateria do celular acaba?

O nível de precisão, a capacidade de avaliação de quantidades infinitas de dados e, mais para frente um pouquinho (só um pouquinho, talvez de três a cinco anos até que a AGI se apresente para o jogo), a capacidade de relacionar variáveis de forma criativa e de fato inteligente vão fazer de nossa intuição algo definitivamente obsoleto. 

Temos falado muito dos empregos e atividades que serão substituídos pela tecnologia, mas é bem diferente quando o que está sendo ameaçado é uma das nossas mais sofisticadas capacidades humanas. Um tipo de atalho cognitivo, sensorial e até espiritual que permite que nos conectemos com a realidade, desde as demandas mais triviais do dia a dia até os movimentos que transformam nossas vidas.

Como a natureza é obcecada por economia, nosso cérebro entende que o que não está sendo usado não merece energia. Da mesma maneira que perdemos a capacidade que tínhamos de guardar dezenas de números de telefones de cabeça, existe uma chance enorme de que nossa intuição vire peça do museu da evolução. E o que isso de fato pode significar? 

Segundo Daniel Kahneman – prêmio Nobel de ciências econômicas em 2002 e pai da economia comportamental e da psicologia do julgamento e tomada de decisão –, nossa intuição, de um modo geral, nos induz ao erro. Tendemos a acreditar de uma maneira quase irresponsável em nossos julgamentos, muitas vezes com pouca fundamentação, nos conduzindo a equívocos históricos.

E é aí que quero chegar. Com o aumento radical da assertividade e da consequente produtividade (obsessão do nosso tempo), o que será de nós sem a chance de errar? Mais do que isso, o quanto da jornada exploratória, do processo de busca do caminho certo, foi fundamental para nossa própria evolução como espécie? 

O PODER DO ERRO

Uma gigantesca quantidade das melhores descobertas e invenções vieram de acidentes e erros de interpretação. Da batata frita ao Viagra. Da pólvora ao antibiótico.

O quanto aprendemos errando? O pensamento crítico e até o autoconhecimento dependem de nossas falhas. Quando usamos nosso livre arbítrio, errando, acertando, escolhendo ir por um caminho ou por outro, ativamos um dos princípios que garantem resiliência para ecossistemas: a descentralização.

de alguma forma, o espaço da decisão continuava em nossas mãos. Para o bem e para o mal. Até agora.

Até poucas décadas atrás – talvez a invenção da bomba atômica seja o grande marco –, era difícil imaginar pessoas, países ou empresas que pudessem colocar todo o planeta em risco. Não existiam donos do processo decisório. Pelo menos, não na escala em que flertamos agora.

Quando acidentes de trânsito ocorrem por falhas de indivíduos (e não são poucos) estatisticamente, por conta da descentralização, podemos confiar que a enorme maioria tomará as decisões corretas. Ontem, assistindo a "O Mundo Depois de Nós", na Netflix, deu frio na barriga vendo centenas de Teslas autônomos idênticos se chocando como um cardume suicida para bloquear uma estrada. Foi mal o spoiler.

Crédito: Netflix

Não faltam vozes alertando para os riscos de tamanha centralização de poder nas “mãos” de algoritmos e de seus poucos donos. Mas não me lembro de ter ouvido discussões sobre o direito e o poder do erro em nosso processo evolutivo.

Talvez nossa intuição seja uma conexão ancestral com o planeta e a realidade. Talvez ela seja um recurso poderoso do grande laboratório que a evolução opera por aqui. Um recurso que simplesmente joga os dados para cima abrindo espaço para o acaso. A própria evolução das espécies é toda regida por ele. Acidentalmente, um determinado indivíduo se tornou mais apto a evoluir. 

O que seria da evolução se tomasse todas as suas decisões fundamentadas em algoritmos obcecados pelo acerto e pela produtividade? Certamente nós não estaríamos por aqui. Bom, mas isso tudo é só uma exploração intuitiva.


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais