Além do deslumbramento tecnológico: o que perdemos quando só se fala em IA?

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Paulo Emediato 5 minutos de leitura

De volta do Web Summit, um dos pontos que mais chamou minha atenção foi: quando só se fala em inteligência artificial, do que deixamos de falar? Digo isso pois um dos maiores eventos de inovação e tecnologia do mundo parecia hipnotizado por uma agenda única.

Por outro lado, vivemos uma realidade tão complexa (e complicada) de humanização das máquinas e mecanização das pessoas, com conflitos e tensões tão profundos, uma crise climática urgente, polarização política e a saúde mental emergindo como questão inadiável – mas para tudo! A gente só quer falar de IA.

Não podemos repetir a mesma onda que experimentamos pouco mais de 10 anos atrás com as redes sociais.

Nas trends contemporâneas, a tecnologia surge como um farol de progresso e inovação. Contudo, essa fascinação constante pela mais recente inovação tecnológica pode ser uma faca de dois gumes, trazendo tanto oportunidades quanto desafios significativos para pessoas, empresas e sociedades.

Tratá-la como uma solução rápida para problemas complexos é uma das armadilhas mais insidiosas do deslumbramento tecnológico. Empresas que focam excessivamente nesse caminho podem negligenciar aspectos fundamentais, como a cultura organizacional, a ética no local de trabalho e o relacionamento humano – elementos que não podem ser facilmente quantificados ou resolvidos por algoritmos.

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Essa subestimação da complexidade humana pode resultar em tecnologias que ignoram as nuances e as necessidades profundas dos indivíduos e da sociedade. Por exemplo, a implementação de sistemas de IA para tomada de decisões, embora possa melhorar a eficiência, também pode atrofiar a capacidade crítica e analítica dos indivíduos, tornando as organizações vulneráveis quando esses sistemas falham ou são manipulados.

A adoção acelerada de novas tecnologias pode exacerbar a divisão digital, criando um abismo entre aqueles que têm acesso e compreensão das últimas inovações e aqueles que não têm. Esse fenômeno pode levar a desigualdades sociais e econômicas mais amplas, onde determinados grupos são deixados para trás no avanço tecnológico.

Tratar a IA como uma solução rápida para problemas complexos é uma das armadilhas mais insidiosas do deslumbramento tecnológico.

Além disso, questões de privacidade e segurança dos dados são preocupações significativas que acompanham o fascínio pela tecnologia. A coleta massiva de dados, muitas vezes vista como necessária para alimentar inovações tecnológicas, pode comprometer a privacidade dos indivíduos e tornar as organizações vulneráveis a ataques cibernéticos.

Outro aspecto crucial é o impacto ambiental da produção e descarte de dispositivos tecnológicos. A constante atualização e substituição de tecnologias contribui para um ciclo de consumo e descarte que pode ser insustentável a longo prazo, levando a problemas ambientais como o aumento de resíduos eletrônicos e o esgotamento de recursos.

A chave para superar os desafios do deslumbramento tecnológico pode ser a busca por um equilíbrio mais cuidadoso e menos obcecado com o crescimento rápido a qualquer custo.

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As empresas e sociedades devem abordar a tecnologia não como uma panaceia, mas como um instrumento a ser usado de maneira responsável e ética. Isso envolve uma avaliação crítica das implicações a longo prazo, garantindo que as necessidades humanas e ambientais não sejam ofuscadas pelo brilho da próxima grande novidade.

Não podemos repetir a mesma onda que experimentamos pouco mais de 10 anos atrás com as redes sociais. O que parecia uma inocente forma de conectar as pessoas se transformou em uma grande plataforma de manipulação política e ideológica, pois estávamos muito distraídos e encantados para lidar com os danos colaterais de mais uma unanimidade global e viciante.

O verdadeiro poder da transformação nos negócios reside na combinação de inovação com uma compreensão profunda e respeitosa da essência humana. Esta transformação é mais profunda e multifacetada, fundamentada em pilares essenciais que refletem a necessidade de um equilíbrio entre a tecnologia e a humanidade.

1. Tomada de decisões: democratizando o poder decisório

A evolução da tomada de decisões de modelos centralizados para estruturas descentralizadas e inclusivas é crucial. Em um mundo onde a rigidez hierárquica muitas vezes sufoca a inovação e a agilidade, uma abordagem mais flexível e colaborativa pode ser vital.

Essa democratização do processo decisório não só torna as decisões mais rápidas e abrangentes, mas também promove uma cultura de inovação e adaptabilidade.

2. Compensação e recompensas: alinhamento com o futuro

As estruturas de recompensa precisam refletir valores como inovação, colaboração e uma visão de longo prazo. Isso significa reconhecer e incentivar comportamentos que contribuam para o crescimento sustentável dos negócios e das pessoas, em vez de recompensar exclusivamente o desempenho financeiro imediato.

3. Governança e dinâmicas de poder: distribuir ao invés de concentrar

De que  forma o poder se distribui no mundo? Estamos compartilhando ou centralizando ainda mais o controle sobre as alavancas do nosso cotidiano? Toda a curva de inovação tecnológica que experimentamos nas últimas décadas acabou por promover mais concentração de riqueza e poder do que novas formas de distribuí-los. Será que dá para ser diferente?

4. Experiência das pessoas: o coração da transformação

Independentemente das tecnologias ou das mudanças internas, se não fizer bem para a vida das pessoas, talvez a transformação não faça sentido. As estratégias de negócios devem se concentrar em melhorar ou criar experiências genuínas, memoráveis e acessíveis, indo além de preocupação do potencial de escala de determinado modelo de negócios.

A chave para superar os desafios do deslumbramento tecnológico pode ser a busca por um equilíbrio menos obcecado com o crescimento rápido a qualquer custo.

Acho que já vimos o suficiente para fugirmos das narrativas únicas. Não dá para surfar o hype do momento, sem parar dois segundos para pensar no que está acontecendo e para outros temas de igual importância.

É claro que os avanços na experiência em IA prometem um novo mundo. Dá uma olhada no volume de capital destinado às novas pesquisas em inteligência artificial generativa, em detrimento de clima, tecnologias verdes ou justiça social.

Se para você isso é papo furado, não tenho a pretensão de te convencer. Mas lembre-se de que vimos quase todos os heróis do Vale do Silício se tornarem vilões em pouco mais de 10 anos.

A verdadeira metamorfose nos negócios ocorre na interseção do humano com o digital, onde a tecnologia está a serviço da melhoria das nossas vidas e o equilíbrio entre tradição e inovação forja valor genuíno e sustentável.


SOBRE O AUTOR

Paulo Emediato vivencia a inovação na prática, de diferentes formas, desde 2012. Com mais de 15 anos de experiência corporativa, já em... saiba mais