O mundo digital e a ilusão da autenticidade
Construir uma autoimagem verdadeira exige aceitar a vulnerabilidade de não ser guiado pelo desejo do outro

Você já parou para se olhar no espelho hoje? Talvez você esteja pensando no espelho do seu banheiro, ou aquele do elevador quando você chega no trabalho. Mas aqui quero falar do nosso black mirror diário – a tela do celular – e do reflexo que as redes sociais não apenas nos devolvem mas, muitas vezes, nos impõem.
Talvez você ainda não tenha se olhado no espelho hoje, mas é bem provável que já tenha rolado o feed das suas redes sociais. E, sem perceber, se comparado com aquela foto perfeita, aquelas férias impecáveis que parecem inatingíveis – e que, no fundo, geram aquela ansiedade sutil. Um reflexo da eterna comparação entre o real e o digital imaginário.
O “território digital” se tornou compulsório. Não ter redes sociais causa estranhamento, como se nossa existência precisasse estar registrada nelas. Já sabemos que as redes foram e continuam sendo programadas para nos manter no piloto automático.
É uma verdadeira programação neurolinguística constante, sustentada por aquilo que nos define como seres humanos: nossa necessidade de pertencimento e identificação com o outro. É essa dinâmica que impulsiona, por exemplo, o FOMO (fear of missing ut, o medo de ficar de fora).
Mas será que já paramos para pensar por que estamos em tantas redes, mesmo sabendo o quanto elas consomem do nosso tempo?
O QUE BUSCAMOS LÁ? IDENTIFICAÇÃO? PERTENCIMENTO?
É fato que sempre moldamos nosso comportamento para nos encaixar em grupos. Desde os tempos de caçadores-coletores, a sobrevivência dependia do coletivo: caçar, se proteger e viver em grupo sempre foram estratégias essenciais.
No fundo, basta olhar para a Pirâmide de Maslow, que, em sua terceira camada, reforça a necessidade de pertencimento como um pilar fundamental para a nossa existência.

O que mudou não foi a necessidade de pertencimento, mas a maneira como ela é explorada no mundo digital. Com a evolução exponencial da tecnologia, nosso modo de agir deixou de ser apenas uma busca por conexão genuína e passou a exigir uma performance constante – agora, não mais para agradar ao grupo, mas para se encaixar nos desejos dos algoritmos.
O que talvez ainda não tenhamos percebido é que, muitas vezes, o que mostramos online reflete mais o algoritmo, as trends e a necessidade de aceitação do que a nossa realidade – aquela que acontece fora dos stories. E, claro, a nossa essência, vai escorrendo pelas nossas mãos, mesmo sem se sentir, e dá espaço para a ilusão algorítmica.
E, assim, nossa autenticidade, nosso jeito único de viver, de fazer o que gosta e de compartilhar experiências reais se perde. E a evolução do que somos e sonhamos? Bom, parece que essa evolução está ficando para depois.
E nesse jogo diário…
Se você está se perguntando quem realmente é, saiba que sair dessa dúvida exige coragem.
Estamos nos afastando do que e de quem realmente somos, criando uma persona digital projetada para agradar ao público e à máquina. Chamei isso de "ego digital" em outro artigo aqui mesmo na minha coluna.
O problema não é apenas a ilusão. O pior é o vazio que ela deixa dentro de nós. A autenticidade digital, que deveria refletir nossa essência, se torna apenas uma construção algorítmica, sem essência, sem coração. Nossa identidade é recortada, editada e moldada para caber no que os outros esperam não de nós, mas da sua bolha.
A personalização digital nos coloca em bolhas – grupos onde todos falam das mesmas coisas, do mesmo jeito. O que pode até ser reconfortante, mas também cria um bloqueio que te impede de experienciar coisas novas, aquilo que é diferente, contraditório.
No fim, acabamos ficando presos no mesmo ciclo: consumir as mesmas ideias, reforçar os mesmos comportamentos e viver dentro de uma previsibilidade confortável, porém limitante.
A BOA NOTÍCIA É QUE SIM, HÁ LUZ NO FIM DA TELA!
Se até aqui você está se perguntando quem realmente é, saiba que sair dessa dúvida exige coragem – a coragem de parecer um tanto estranho na forma como se relaciona com as redes.
Não estou dizendo para você sair das redes, apagar seus perfis e abandonar o mundo digital. Longe de mim sugerir isso. Olha eu aqui também!

Mas, como diria Milton Nascimento, "É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre." E isso vale também para quem decide sair do piloto automático.
Ter coragem para parecer desconectado em um mundo hiperconectado não é fácil. Vivemos em uma sociedade que insiste em nos colocar em caixas. Construir uma autoimagem verdadeira e com autenticidade exige aceitar a vulnerabilidade de não ser guiado pelo desejo do outro. É sair do modo automático e assumir, de fato, a direção da própria vida.
Lembre-se: cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.
Permita-se.