Inovação em educação: a disrupção não tem a cara que a maioria imagina

Sem um cuidado sistêmico não haverá sustentabilidade e equidade no acesso aos benefícios da inovação em educação

Crédito: Deagreez/ Getty Images

Clara Cecchini 11 minutos de leitura

“É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem.”  Essa é uma daquelas pérolas da MPB que provoca reflexões há gerações, que se perguntam “se realmente ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” – já que tudo parece ter mudado tanto.

Estamos em um momento de transformações tão intensas que, diariamente, aqueles de nós que atuam com inovação e buscam refletir criticamente encontram novas interpretações sobre o contexto em que vivemos.

Convivendo em ambientes tradicionais e inovadores, grandes corporações e escolas, empresas de educação e setor público, tive um insight: um dos principais apegos ao passado que impede a abertura ao novo é justamente o imaginário que cultivamos por muito tempo sobre como o futuro deveria ser.

Essa disputa de imaginários impede que enxerguemos possibilidades de inovação que não cabem nas categorias predeterminadas, teses de produtos já existentes, fetiches de consumo, batalhas ideológicas.

IMAGINÁRIOS EM DISPUTA

Se quiser dar cores a essa ideia, pesquise o artista francês Jean-Marc Côté que, no final do século 19, fez parte de um grupo de artistas convidados a ilustrar como seria a França nos anos 2000.

A série, chamada, En l’an 2000 (No Ano 2000), ficou conhecida apenas em 1986, quando Isaac Asimov publicou algumas das imagens no livro "Future Days: A Nineteenth Century Vision of the Year 2000" (Dias futuros: uma visão do século 19 sobre o ano 2000, em tradução livre).

Uma das imagens mais conhecidas da série é "At School" (Na escola). Talvez você já tenha visto essa ilustração fora de contexto em algum lugar: são meninos sentados em uma sala de aula, com fones de ouvido enormes ligados por fios a uma máquina na qual um professor insere livros (que parece uma máquina de picotar papel ou de moer carne).

Já encontrei parte dessa imagem sendo usada para ilustrar “como imaginavam que ouviríamos música no futuro” (errado factualmente) e “como a educação atual ainda é igual à do século 19" (errado por simplificação, descontextualização e generalização).

L'école en l'an 2000 (A escola no ano 2000), de Jean-Marc Côté (Crédito: Reprodução)

Essa ilustração e suas interpretações exemplificam bem como a educação é um campo de disputas de imaginários futuristas, e com um tempero a mais: todo mundo tem uma opinião sobre como o futuro da educação deveria ser. O que é ótimo por um lado – pois a educação é mesmo um problema de todos – mas péssimo por outro, abrindo espaço para decisões sem fundamentos.

Claro que existem exemplos extremamente positivos sobre o uso da tecnologia na educação. Mas eles só acontecem quando a intencionalidade pedagógica não fica em segundo plano, perdendo espaço para decisões direcionadas por interesses externos à aprendizagem (como marketing, produtos, lucro, velocidade, escala, gosto pessoal, opiniões...).

Vários elementos já compuseram imaginários sobre o futuro “resolvido” da educação: um aparelho por aluno (tablet, notebook, ou o fone de ouvido gigante do Côté); conteúdo personalizado sob demanda na palma da mão; aprenda o que você quiser, na hora que você quiser; aprenda sem esforço; não precisaremos mais de diplomas; não precisaremos mais de escolas; a plataformização levará as melhores aulas a todos os alunos; os bots são melhores que os professores; complete.

São “balas de prata” que buscam se sustentar absolutas, tanto em termos de contexto quanto de abrangência. Nenhum problema complexo é resolvido por uma solução única, mas um mercado de números gigantes pode ser muito convincente. É preciso estar atento e forte.

QUAL É A "CARA" DA INOVAÇÃO EM EDUCAÇÃO?

A resposta genérica seria “aquela que valoriza o que é humano”. É correta, mas vale para quase tudo, certo?  O que isso significa, especificamente?

Existem alguns caminhos para responder a essa pergunta, e aqui vou me dedicar às questões relacionadas ao fazer educacional (embora aquelas relacionadas ao seu propósito sejam também fundamentais). Dois artigos recentes de educadores que acompanho me chamaram a atenção pela semelhança na abordagem, consistência na argumentação e concretude de propostas:

The Great Online Learning Reset? (13/03/25, A grande reinicialização do aprendizado online, em tradução livre), da doutora Philippa Hardman, pesquisadora de Cambridge; e The Great Revelation: AI Exposes the Limits of Educational Control (31/03/25, A grande revelação: IA expõe os limites do controle educacional), do professor e doutor em filosofia Nick Potkalitsky.

O primeiro volta-se mais para a aprendizagem no trabalho; o segundo, para o universo das escolas. Mas ambos trazem pontos preciosos para quem está nesse esforço da “grande reimaginação da educação”.

Os dois artigos mostram que a inteligência artificial está abrindo uma oportunidade de nos livrarmos de práticas comprovadamente ineficazes, mas que, por motivos externos à aprendizagem, se disseminaram e arraigaram.

E mais: se não tivermos coragem de romper com elas agora, não apenas deixaremos de aproveitar a janela de oportunidade, como aprofundaremos ainda mais um design educacional baseado em premissas equivocadas.

A IA ENCONTRA O DESIGN DE APRENDIZAGEM

A argumentação de ambos começa de um mesmo ponto: como a IA consegue driblar os sistemas de avaliação. Seja realizando tarefas sob comando direto dos alunos, que lhes transferem as perguntas dos professores, seja por meio de sistemas que concluem treinamentos online pelos participantes, e respondem perguntas.

Nos dois casos, a primeira reação dos educadores foi de resistência, tentativa de criação de barreiras para bloquear essas ações.

O que os autores propõem, e que eu vejo como o melhor caminho, é mudar a abordagem e reconhecer que a IA não está destruindo algo maravilhoso, mas sim expondo uma realidade que insistíamos em ignorar: a forma como avaliamos – ou seja, atestamos que a pessoa aprendeu – já não era eficaz em grande parte dos casos.

Como diz Potkalitsky: “a facilidade e a indetectabilidade do conteúdo gerado por IA quebram a equação tradicional da escolaridade que equiparava o trabalho submetido ao aprendizado alcançado”. 

professores e inovação em educação
Créditos: kjpargeter/ Freepik/ Milad Fakurian/ Unsplash

Também quebram a equação de outras práticas amplamente utilizadas. Hardman, no texto citado, explora como apenas disponibilizar conteúdo não garante aprendizagem. Potkalitsky, defende que o controle que sobre a aprendizagem que os professores imaginavam ter antes da IA era nada mais do que uma ilusão.

Ter a oportunidade de questionar premissas tão sedimentadas pode abrir caminhos promissores de inovação, se tivermos coragem e fôlego.

Importante ressaltar que não há saudosismo nesses questionamentos, proposta de “voltar” a um purismo tecnológico, mas sim reenquadrar as perguntas que fazemos no lugar correto, que é a eficácia da aprendizagem – ela sim deve direcionar o uso da tecnologia.

E para isso, além de gostos e opiniões, existem as ciências de aprendizagem.

Neste vídeo de 2023, Philippa Hardman explica muito claramente como as ciências produziram conhecimento confiável sobre como as pessoas aprendem, mas esse conhecimento pouco se reflete no design de aprendizagem, seja ele baseado em tecnologia ou não.

Se formos intelectualmente honestos, não é difícil compreender que a disponibilização de conteúdo assíncrono seguido de teste é uma reprodução digitalizada da tão criticada aula expositiva seguida de prova. Existem conteúdos melhores e piores, aulas expositivas melhores e piores – mas dentro das limitações do próprio formato.

INOVAÇÃO NA EDUCAÇÃO NÃO É SÓ DISPONIBILIZAR CONTEÚDO

Em seu artigo anteriormente citado, Hardman dá três argumentos consistentes para demonstrar a falência desse modelo tradicional e dominante.

Desacoplamento cognitivo

Ao separar teoria e prática, há uma “lacuna de transferência”, que faz com que precisemos de até 57 ciclos de reforço em comparação a apenas um ou dois quando aprendemos por meio da prática aplicada.

Avaliação por meio de métricas de proxy

Ou seja, medidas indiretas. Geralmente queremos desenvolver competências, mas medimos a assimilação do conteúdo e não a competência desenvolvida. Ela cita um estudo da Salesforce que descobriu que funcionários com pontuação superior a 90% em testes demonstraram apenas 34% de adesão ao protocolo em situações reais.

Descontinuidade temporal

Aprendeu, não aplicou, esqueceu. Sem aplicação, 60% do conhecimento desaparece em 48 horas.

Esses argumentos são poderosos para convencer aqueles que insistem que consumir conteúdo resulta automaticamente em aprendizagem. Ou pior, que se satisfazem com a ideia disponibilizar conteúdo é “fazer a nossa parte”– o resto estaria a cargo do aprendiz. São argumentos que sacrificam a eficácia em nome da escala.

Aí está o pulo do gato e a provocação maior de Hardman: agora, com os agentes de IA, a barreira para escalar novas formas de proporcionar experiências de aprendizagem significativas no local de trabalho não é mais tecnológica.

Agentes de IA já podem criar processos de aprendizagem integrado ao fluxo de trabalho (por exemplo acionada por eventos do calendário), ou com intervenção preditiva (com algoritmos que antecipam lacunas de conhecimento), apenas para citar dois exemplos.

IMAGINÁRIO SEQUESTRADO

Embora a tecnologia esteja chegando de forma desigual aos diversos contextos, em muitos deles não é essa a barreira mais difícil de vencer. É a mentalidade que desenha aprendizagem para as plataformas disponíveis, ainda fortemente centradas em disseminação de conteúdo.

Hardman acha que essas plataformas, no estilo “pare e aprenda”, irão morrer. Eu tenho das minhas dúvidas, pois vejo aulas expositivas vivíssimas por aí. Meu palpite é que os modelos irão, na melhor das hipóteses, conviver.

Nos piores dias, chego a acreditar que não conseguiremos aproveitar essas novas possibilidades de design de aprendizagem porque o modelo centrado em conteúdo sequestrou o nosso imaginário.

E é aí que entra um elemento crucial e negligenciado nos processos de inovação: a necessidade do controle, muitas vezes saciada por processos que dão a ilusão do controle. Ao trazer esse elemento para a análise, Potkalitsky enfrenta um debate espinhoso, mas necessário:

“Agora que os alunos podem produzir redações polidas via IA com o mínimo de esforço, os educadores são compelidos a se concentrar novamente no processo de aprendizado em vez de apenas no produto final. Essa percepção pode ser profundamente perturbadora. Ela desafia nossa identidade profissional e estruturas institucionais construídas na premissa da autoridade do professor. Ela nos faz questionar a validade de nossas avaliações e a autenticidade do trabalho do aluno. Mas talvez, em vez de ver isso como uma ameaça, possamos reconhecê-lo como uma oportunidade para um modelo educacional mais honesto — um que reconheça a realidade de que os alunos sempre foram coautores de suas histórias educacionais.”

Potkalitsky cita Paulo Freire, destacando a importância de ver os alunos como sujeitos de sua própria aprendizagem e não como objetos a serem controlados.

O protagonismo no processo de tomada de decisão sobre a própria aprendizagem, se não está prevista no design educacional, encontra outros caminhos para se realizar, nas dinâmicas informais entre alunos que conhecemos bem dos tempos de escola.

UM NOVO IMAGINÁRIO

Em uma realidade dominada por máquinas que respondem, onde os tempos da vida parecem restringir-se a produzir e consumir, a educação deve, por excelência, ser o espaço onde perguntas e o processo criativo florescem. E isso não acontece em ambientes assépticos, previsíveis e perfeitos.

A dimensão humana da educação é contraditória, imprevisível, vibrante. Humanos riem alto, se emocionam, seduzem, divagam, fazem sujeira, sentem fome, perdem o foco, cansam, se empolgam, sonham, surpreendem. Têm vontades e desejos — e encontram caminhos para realizá-los.

Nosso imaginário futuro sobre a educação deve integrar a tecnologia a essas outras dimensões humanas e não buscar suprimi-las em nome de uma "estética lean", eficiente e controlada. A tecnologia deve ampliar, e não substituir, a riqueza da experiência humana no aprendizado.

Entre tantas frases marcantes de Nick Potkalitsky, esta sintetiza o que estamos vivendo atualmente nos vários contextos educacionais: “Talvez o que esteja nos irritando não seja realmente sobre IA. É sobre confrontar a lacuna entre a educação que achamos que estamos fornecendo e a educação que os alunos estão realmente criando para si mesmos.”

com os agentes de IA, a barreira para escalar novas formas de proporcionar experiências de aprendizagem não é mais tecnológica.

Mudar essa realidade é, ao mesmo tempo, uma oportunidade imensa e um desafio gigantesco, com implicações profundas não apenas nas práticas dos educadores, mas também nos sistemas que organizam a oferta educacional — seja nas escolas, seja nas empresas. Além de toda a complexidade sociocultural que é educar nos dias de hoje.

De forma alguma podemos subestimar a complexidade da tarefa, e muito menos delegá-la a um único ator. Embora nós, que estamos na sala de aula, possamos criativa e responsavelmente inovar em nossas práticas, sem um cuidado sistêmico não haverá sustentabilidade e equidade no acesso aos benefícios da inovação em educação.

Só pode existir o que foi um dia imaginado. “Viver é melhor que sonhar”, mas alguns momentos precisam ser sonhados antes de serem vividos.

Que cada um de nós, educadores, administradores ou criadores de políticas, encontre a coragem e a competência para encarar esse “caos” como uma oportunidade. Uma oportunidade para inovar no sentido de devolver à educação sua verdadeira essência: um espaço de experimentação e criação humana. Um fim em si mesma.


SOBRE A AUTORA

Clara Cecchini é especialista em aprendizagem organizacional, consultora, escritora e palestrante, além de coautora do livro "Aprendiz... saiba mais