Trabalho em 2021: o que deu errado?
Essa minha coluna quase sempre será feita em colaboração, como já disse aqui, justamente por acreditar que o trabalho é muito melhor quando feito e pensado junto. Dessa vez, trouxe o André Alves, da Float, pra me contar mais sobre o trabalho em 2021. Quando li o report feito por ele e pelo Lucas Liedke, “Uma narrativa sobre os sentidos do trabalho” imediatamente disse pra ele que queria contar essa história com ele aqui, justamente por acreditar que a gente errou em muita coisa na nossa vida profissional.
Eu venho de uma vida de redação, por 20 anos estive sentada em veículos jornalísticos. Desde 2018, trabalho com as maiores companhias do Brasil e do mundo e vejo muita gente batendo pino, sempre assoberbadas, reclamando demais e produzindo de menos. As mais felizes são as que entenderam que trabalho tem hora pra começar e terminar, essa falácia de “trabalhe enquanto eles descansam” é uma cafonice de herdeiro que já veio rico de fábrica e quer justificar alguma coisa que poderia ser resolvida na análise freudiana.
Mas não vou me estender. André, a coluna é sua:
Repita comigo: eu ? trabalho ? demais ? . Agora feche os olhos e responda: você consegue manter o seu ritmo atual de trabalho por mais 10 anos? Ou você acha que conseguiria trabalhar um pouco mais? E todo esse trabalho… Para quê?
O trabalho é o pilar estruturante do sujeito contemporâneo. Muitos se definem pelo que fazem ou mesmo pelo lugar em que trabalham — de Googlers às consultoras Mary Kay. A doutrina cringe-millennial embalou as últimas décadas com o discurso “faça-o-que-você-ama”. Mas o saldo dessa crença é que ficou impossível falar em trabalho sem esbarrar em dilemas como: precarização, exaustão/burnout e o binômio meritocracia-privilégios. Ou, como sentencia a internet, “trabalhe com o que você gosta e nunca mais gostará de nada”. Afinal, o que deu errado?
Um dos grandes paradoxos do início dos anos 2020 é habitarmos um tempo em que tantos estão sem trabalho enquanto muitos outros vivem no excesso de trabalho, dicotomia intensificada pela pandemia da COVID-19. No Brasil, os 14,4 milhões de desempregados (IBGE, Abril 2021) e os 5,9 milhões de desalentados, convivem com os 42% dos brasileiros em home office que trabalham 40 horas a mais por mês (Oracle e Workplace Intelligence, 2021). Paralelamente, também avança um colapso silencioso da saúde mental — sintomas de ansiedade e depressão afetam 47,3% dos trabalhadores durante a pandemia (Fiocruz). O sujeito contemporâneo trabalha demais e deprime-se demais, ao mesmo tempo em que ninguém mais aguenta sequer ouvir falar em burnout.
Para muitos, a relação com o trabalho é pautada por um CANSAÇO COMPULSIVO, a sensação de que se você não se sente em um moedor de carne, talvez não esteja trabalhando direito. A relação com o cansaço também se tornou estrutural, um marcador de identidade — você não está cansado, você vive cansado. Ou pior, quer estar cansado, porque esse pode ser um marcador de sucesso. Mas quem é capaz de bater a meta quando mal consegue sair da cama?
A relação com o cansaço também se tornou estrutural, um marcador de identidade — você não está cansado, você vive cansado.
Nesse ritmo, vamos nos tornando perigosamente adaptados — e até apegados — ao cansaço. Um mundo em que o único jeito de “descansar” da maratona de reuniões é maratonando séries, posts, games e qualquer atividade capaz de chapar a mente. Nesse contexto, o sujeito deve ser autônomo ao ponto de gerenciar inclusive a própria sanidade mental. É a CILADA DA AUTONOMIA que naturaliza inclusive a ideia de que tudo é uma questão de motivação. Acordar um pouco mais cedo, cada dia mais cedo. #clube5damanha #lifehacks #supercoffee.
Gradativamente, os departamentos de Recursos Humanos vão se tornando áreas de gestão de distúrbios humanos. Equipes dedicadas a fazer com que as pessoas não “quebrem”. Vamos de meditação corporativa? Ainda que as relações de trabalho pareçam tão fora de lugar, parte da cultura e do mercado insistem em previsões idealizadas sobre o Futuro do Trabalho. Nos prometeram reuniões e em realidade virtual e hologramas, mas nos deram o Zoom, o habitat natural de quem vive incontáveis dias de HELL-OFFICE — lembrando que só 11% dos brasileiros trabalharam em suas casas em 2020 (Pnad Covid-19 / Ipea).
CANSAÇO COMPULSIVO , HELL-OFFICE, e a CILADA da AUTONOMIA são movimentos comportamentais e culturais que habitam as relações de trabalho na atualidade — as Vibes do Trabalho. São sentimentos coletivos de um contexto movido pelo CULTO ao CORRE, no qual operamos no ritmo da demanda e na urgência da notificação. É uma realidade baseada em DELÍRIOS TECHTÓPICOS, a crença inabalável de que a tecnologia vai nos salvar; ao mesmo tempo em que as máquinas parecem prestes a tomar nossos trabalhos no GRANDE GOLPE da AUTOMAÇÃO.
Tudo isso aponta para um problema sistêmico, sobretudo na aposta que fizemos — e seguimos fazendo — de que o trabalho pode dar todo o sentido às nossas vidas. É a estratégia ambiciosa e totalitária de que o trabalho pode dar conta de realização, satisfação pessoal, impacto no mundo, senso de comunidade, fonte de aprendizados, além de fonte de subsistência. Mas se o culto ao trabalho foi um dos band-aids que usamos para conter a falta de sentido que pulsa em nossos tempos (e na existência como um todo), essa ferida está ainda mais aberta. É como se seguíssemos acreditando que o trabalho poderia sustentar nossa vontade de estar vivo. Spoiler: não vai dar.
O indivíduo precisa de diferentes fontes de sentido — educação, arte, esportes, ativismo, espiritualidade, família — para se sustentar. Quando cortamos outras fontes e apostamos tudo no trabalho, essa relação fica sobrecarregada, porque é impossível que o trabalho dê conta de tudo. Isso também faz com que muitos colaboradores depositem expectativas cada vez mais altas nas empresas e no papel que elas devem desempenhar em suas vidas. Resumindo, é insustentável.
O indivíduo precisa de diferentes fontes de sentido — educação, arte, esportes, ativismo, espiritualidade, família — para se sustentar.
Não há aplicativo, plataforma ou processo de inovação que dê conta de tudo isso. Se o trabalho vai caminhando para uma encruzilhada cada vez mais complexa em tantos setores, é porque temos questões estruturais que precisam ser pensadas e, mais cedo ou mais tarde, discutidas.
A Sociedade da Performance nos faz acreditar que a mudança e o futuro não esperam por ninguém. Daí corremos, sempre atrasados, em direção ao tal futuro. Mas, assim, esquecemos que também somos agentes de mudança e que podemos fazer algo pelo futuro, começando agora, no presente. Repensar as relações e os sentidos do trabalho pode ser um dos caminhos para libertar o futuro no lugar de condená-lo. E, quem sabe assim, reaprendemos a descansar no lugar de viver em chamas.
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Essas e outras discussões fazem parte da nova pesquisa da float sobre VIBES do TRABALHO, um estudo da @floatvibes sobre os Sentidos do Trabalho. O relatório completo está disponível em www.youfloat.co .