Self-service de bolacha de água e sal

O fenômeno do coaching é, ao mesmo tempo, causa e reflexo dos tempos atuais, uma época em que o conhecimento é supostamente valorizado

Crédito: Marat Musabirov/ iStock

Guido Sarti 3 minutos de leitura

"Que faz um autor com as pessoas vulgares, absolutamente vulgares? É impossível deixá-las sempre fora da ficção, pois as pessoas vulgares são, em todos os momentos, a chave e o ponto essencial na corrente de assuntos humanos; se as suprimimos, perdemos toda probabilidade de verdade."

Dostoiévski

De tão onipresentes que são – e de tão saturada que está a comédia em torno de sua estética e de suas promessas –, os coaches já se tornaram quase um pós-meme. É tão engraçado que já quase não tem mais graça. Ainda assim, é difícil que uma pessoa com acesso à internet passe um dia inteiro sem ser impactado pelo menos uma vez por ele. O coach.

Importantíssimo deixar nítido que esse texto não tem a pretensão de se referir a todos os profissionais de coaching. Cada caso é um caso, e isso vale tanto para os coaches quanto para quem procura seus serviços. Esse texto é um esforço de compreensão para entender um pouco do contexto desse fenômeno e deixar a pergunta: será que a gente precisa ser tão bom em tudo o tempo todo?

modernizar a forma como transmitimos conhecimento me parece interessante e até natural, mas não de qualquer maneira e nem a qualquer custo.

Não se trata de menosprezar a beleza do aprendizado. Poucas coisas são mais bonitas que uma pessoa que não sabia fazer algo se tornar um mestre naquele ofício. Mas você já viu alguém fazendo o que gosta? É ainda mais bonito.

A pureza simples e espontânea de fazer uma coisa não pelo resultado, pela meta, pela otimização da performance, mas pelo prazer. Crianças são mestres nisso. Como declamou o poeta Lews Barbosa, é preciso fazer a criança interior vir morar na capital.

A expressão “amador” hoje é quase um xingamento, mas já foi um elogio. Na década de 1930, houve no Brasil um grande embate entre atletas de futebol profissionais versus amadores. Não raro, os profissionais eram vistos com desprezo, quase que como sub atletas. Ser amador é amar algo a ponto de não querer nada em troca.

O fenômeno do coaching não está isolado do mundo: ele é, ao mesmo tempo, causa e reflexo dos tempos atuais, uma época em que o conhecimento é supostamente valorizado. Mas um conhecimento dos nossos tempos, tão nutritivo e rápido quanto uma bolacha de água e sal.

Crédito: Deposiphotos

Não estou dizendo que o conhecimento está restrito às salas de aulas. O formato geral da escola é ultrapassado, inspirado em uma lógica industrial, com assuntos e metodologias que têm pouco a ver com a realidade. Em suma: feito para o aluno não gostar de estudar.

Sob esse ponto de vista, a premissa de modernizar a forma como transmitimos conhecimento me parece interessante e até natural. Mas não de qualquer maneira e nem a qualquer custo.

Também não compro o preguiçoso argumento de que autoajuda é coisa de “perdedor”. Primeiro: quem seria louco de recusar ajuda? Ninguém está 100% são. Ninguém é tão autossuficiente assim. Mas, para mim, o buraco é ainda mais embaixo.

Poucas coisas são mais bonitas que uma pessoa que não sabia fazer algo se tornar um mestre naquele ofício.

Qualquer filme que assistimos, livro que lemos, viagem que fazemos – quase tudo é autoajuda, inclusive a mais alta filosofia. Concordo com Renato Teixeira, compositor de “Romaria” e “Tocando em Frente”: “toda música é autoajuda”.

Basicamente, toda atividade que executamos ao longo de um dia – ou de uma vida – tem como pano de fundo a ideia de “ajuda”, palavra usada aqui como uma simplificação para se referir a algo como “evoluir”, “superar”, “curar” ou “nos tornarmos a melhor versão de nós mesmos”, como um coach diria.

O problema da autoajuda e do coaching é quando a retórica se torna um self-service de soluções prontas. Para quem duvida que uma autoajuda mais pujante é possível, sugiro a leitura de Eckhart Tolle. Ou a prática da meditação, que é tudo, menos fácil (no sentido de que a busca pelo autoconhecimento demanda proatividade, disciplina e autonomia).

O que não falta nesse mundo – e, principalmente, dentro da nossa cabeça – são problemas e preocupações que justifiquem a busca por ajuda. Ser humano definitivamente não é fácil. As soluções também não são.


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais