Sonhamos que a internet iria fortalecer a democracia. Não foi bem assim

Apesar da promessa de ser mais democrático que a televisão, o marketing eleitoral digital não trouxe mais seriedade às disputas eleitorais

Créditos: Freepik/ Pikisuperstar

Harry McCracken 4 minutos de leitura

Cinco dias antes de Donald Trump derrotar Hillary Clinton nas eleições presidenciais dos EUA em 2016, escrevi uma matéria que traçava paralelos com o ano de 1992. Essa foi a primeira vez que uma campanha eleitoral teve um componente digital – especialmente para candidatos menos conhecidos, como o ex-prefeito de Irvine, Califórnia, Larry Agran.

Sem conseguir espaço nos principais veículos de mídia, o pré-candidato democrata fez algo que nenhum outro aspirante à presidência havia feito antes: deu uma coletiva de imprensa virtual no CompuServe, o maior serviço online da época.

No final, Agran recebeu menos de 60 mil votos nas primárias democratas. Mas outros candidatos também adicionaram um elemento digital às suas campanhas, como George Bush (pai) e Bill Clinton.

Um artigo publicado na revista impressa do CompuServe argumentava que esses esforços tecnológicos poderiam ajudar a superar “o tratamento superficial dado pelas mídias de massa à política e a repetição de frases de efeito dos candidatos”. Na linguagem da era da internet discada, essa tendência foi chamada de “modemocracia.”

Olhando para trás, essas expectativas iniciais parecem um tanto ingênuas. Trinta e dois anos depois, uma parte considerável das campanhas eleitorais foi transferida para o ambiente digital. Contudo, o processo não se tornou mais sério ou baseado em fatos.

Desde o surgimento das redes sociais, tudo ficou ainda mais superficial. As opiniões, críticas e vídeos que lotam nossos feeds muitas vezes propagam desinformação e até conteúdo deliberadamente falso.

Isso nos traz a 2024, com a primeira eleição presidencial norte-americana da era da IA generativa. No início do ano, um deepfake do presidente Biden fez ligações automáticas para eleitores do estado de New Hampshire, dizendo para não irem votar.

Trump compartilhou imagens geradas por inteligência artificial e acusou a vice-presidente Kamala Harris de usar IA para inflar o número de apoiadores em comícios.

No Twitter (atual X), Elon Musk compartilhou um vídeo com uma voz sintetizada de Harris sem deixar claro que se tratava de uma paródia. Também lançou um novo gerador de imagens que os usuários rapidamente utilizaram para criar imagens dos candidatos em situações improváveis.

Créditos: Getty Images/ photosmash/ iStock

Felizmente, a maioria desses conteúdos falsos não é muito convincente se você prestar atenção. Temos sorte de a tecnologia ainda não ter sido usada de forma mais assustadora – até agora. Ainda assim, como as redes sociais antes dela, a IA não mostra sinais de enriquecer o rito da democracia.

Não podemos culpar os especialistas em tecnologia de 1992 por não preverem o surgimento de deepfakes décadas depois. Mas, mesmo no início dos anos 90, algumas pessoas já percebiam que os serviços online não refletiam a sociedade como um todo.

Um artigo escrito por Evan I. Schwartz, publicado na “Businessweek”, citava uma frase de Clem Bezold, diretor executivo do Instituto para Futuros Alternativos (desativado em 2019): “quantas pessoas pobres têm Prodigy ou CompuServe?”.

As opiniões, críticas e vídeos que lotam nossos feeds propagam desinformação e até conteúdo deliberadamente falso.

Mesmo entre os mais ricos, estar online era um hobby caro e relativamente exótico. O CompuServe, principal serviço da época, custava US$ 12,80 por hora e tinha menos de um milhão de usuários, nem todos engajados na política.

Claro, a internet não é uma única grande bolha, é um conjunto de bolhas. Na semana passada, quando Musk fez uma enquete sobre a eleição presidencial em seu perfil no X/ Twitter, Trump venceu Harris por 74% a 26%. Esse resultado revela mais sobre sua base de fãs do que sobre o consenso de todos os usuários da plataforma (e me sinto um pouco mais burro só de ter acompanhado isso).

Embora me sinta aliviado por não fazer parte da bolha particular de Musk, também me preocupo em me apegar demais à minha própria. A internet é muito mais eficaz em criar circuitos fechados de feedback do que em promover a realidade compartilhada que o processo democrático requer. Um problema que define o momento tecnológico atual, mas que era difícil de prever em 1992.

Não estou dizendo com isso que quero voltar aos tempos em que campanhas políticas eram filtradas quase exclusivamente por jornais, revistas, TV aberta e rádio – e talvez um ou dois canais de notícias a cabo.

Tenho acompanhado a cobertura desta eleição de uma forma que seria impossível naquela época; estou viciado em podcasts sobre o assunto. Mas, citando Linus, de “A Turma do Charlie Brown”, “não há fardo mais pesado do que um grande potencial”.

Mesmo que o mundo online tenha mudado nossas vidas para melhor de várias maneiras, a promessa da modemocracia ainda não foi cumprida.


SOBRE O AUTOR

Harry McCracken é editor de tecnologia da Fast Company baseado em San Francisco. Em vidas passadas, foi editor da Time, fundador e edi... saiba mais