A exaustão silenciosa (e sem respostas) de quem está procurando trabalho
Rotina de envio de currículos, participação em processos seletivos, IA recrutadora e falta de retorno pesa na saúde mental de quem procura emprego

Procurar trabalho dá muito trabalho. E cansa. Na era das redes sociais, da hiperprodutividade e dos recursos humanos automatizados, esse cansaço ganha contornos de exaustão. No Brasil, 83% dos que estão buscando emprego dizem ter pouca energia e 71% têm perda de interesse em prazer na vida, de acordo com o Índice Instituto Cactus-Atlas de Saúde Mental (Icasm).
Entre enviar centenas de currículos por dia, participar de processos seletivos online em muitas etapas, alta concorrência por vaga, não receber resposta e ainda se manter ativo nas redes sociais profissionais, quem busca a recolocação no mercado de trabalho está à beira do burnout.
Ou quase: embora esse tipo de esgotamento não possa ser chamado de burnout oficialmente (já que acontece fora do ambiente de trabalho), ele leva a um estado de desânimo que pode fazer com que a pessoa desista de procurar emprego. .
De acordo com o IBGE, 3,26 milhões de brasileiros desistiram de procurar trabalho em 2025, pois não acreditam que conseguiriam uma vaga. Os chamados “desalentados” representam 2,9% da força de trabalho do país. Um número que permanece praticamente estável nos últimos 12 meses, mesmo com a queda da taxa geral de desemprego de 7,9% para 6,8%.
A psicóloga do trabalho e professora da PUC-GO Ariana Fidelis, que estuda a relação de saúde mental e desemprego, diz que, em parte, o esgotamento se explica pela incerteza financeira. Em outra parte, pelo próprio “trabalho” que é procurar emprego.
De acordo com levantamento da Resume Genius, 72% dos desempregados dizem que a saúde mental foi negativamente impactada pela busca de vagas.
A estafa aumenta a cada processo seletivo ou seleção no qual o candidato não é chamado ou que não resulta em emprego. “A pessoa entra num ciclo de tentativas frustradas que colocam em dúvida tudo o que ela já conquistou”, diz Ariana.
GHOSTING DO RH
Essa sensação de desorientação cresce em um cenário no qual as companhias se valem dos Applicant Tracking Systems (ATS), ou sistemas de gestão digital de recrutamento para avaliar candidatos. Tais sistemas usam inteligência artificial para selecionar currículos e são capazes de analisar milhares de perfis profissionais de uma vez só.
Na visão de Rui Brandão, médico, cofundador da Zenklub e vice-presidente de saúde mental da Conexa, embora sejam necessários, os sistemas estão tomando lugar de processos humanizados. Isso não é bom para os humanos que querem, de fato, achar um emprego.
“Processos longos e impessoais, que muitas vezes não têm retorno, aumentam a sensação de invisibilidade e de insignificância para quem já está em uma situação vulnerável, que é o desemprego”, diz. Levantamento feito pelo LinkedIn mostra que 62% dos que buscam emprego não receberam resposta de processos seletivos.
três em cada cinco profissionais em busca de emprego estão usando IA para mudar o currículo.
Para Brandão, o “ghosting corporativo” não é apenas uma falha de comunicação, é uma forma de desumanização que afeta diretamente a saúde mental. “É como se a pessoa não tivesse existido. Isso corrói a autoestima e alimenta uma espiral de autocrítica.”
Mas a tecnologia não pode ser culpada, argumenta Paula Esteves, CEO da Cia de Talentos, maior consultoria de educação para a carreira na América Latina. “Quando o processo é bem estruturado o suficiente para aplicar diversos testes e entrevistas, também deveria ser capaz de devolver algo ao candidato. Mesmo um ‘não’ pode ser mais saudável do que o silêncio”, afirma.
Não receber resposta depois de tantas etapas não é apenas frustrante. É desrespeitoso. “A pessoa investe tempo, energia, expectativa. Muitas vezes não tem nem um ‘obrigado por participar’", diz Paula. É a receita para o esgotamento: muita energia para pouco retorno.
CURRÍCULO NO ESCURO
A recolocação no mercado de trabalho leva de oito meses a um ano e meio, estima a CEO da Cia de Talentos. Um tempo nada desprezível para manter a sanidade emocional. “A seleção já é um processo difícil e desconfortável para todos os lados. Se o processo é menos humanizado, menos robusto, causa desgaste”, diz Paula.
A concorrência também preocupa. Plataformas de recrutamento online recebem, em média, 790 candidaturas por vaga em empresas com mais de cinco mil funcionários. Em empresas menores, a média é de cerca de 280 candidatos por vaga.
Segundo levantamento do LinkedIn, 72% dos profissionais de RH percebem que o mercado está mais desafiador e competitivo. O que se reflete em vagas mais criteriosas e cria um ruído: 40% dos profissionais acreditam que os requisitos anunciados pelas empresas costumam ser “irreais” para as vagas oferecidas.
A complexidade só aumenta quando as ATSs entram no cálculo. Aqueles que procuram emprego não precisam se preocupar só com a boa impressão que precisam causar nos gestores ou na empresa. Também se preocupam com o algoritmo.

“Você deve usar as palavras certas para que o robozinho te ache”, diz Deives Rezende Filho, CEO da Conduru Consultoria, especializada em implementação de programas de ética, diversidade e governança corporativa.
Não é para menos: três em cada cinco profissionais em busca de recolocação estão usando inteligência artificial para mudar o currículo, de acordo com levantamento da Capterra. Cerca de 80% admitem que a IA, inclusive, melhora atributos e qualidades descritas. Em quase 20% dos casos, a razão é para tornar o currículo atraente para as plataformas de recrutamento.
Assuntos como search engine optimization (SEO) – sistema de otimização de mecanismos de buscas usado por quem cria conteúdo – entraram nos conhecimentos necessários para enviar o currículo.
Há discussões sobre quais palavras chamam mais atenção. Nas redes sociais, multiplicam-se os conselhos de como se dar bem nas plataformas. “A pessoa se prepara para o robô, não para a vaga”, diz Rezende Filho.
VAZIO POR DENTRO
A pressão para quem está desempregado também vem das redes sociais. No ano passado, houve uma discussão sobre o selo “open to work” no perfil do LinkedIn. Há aqueles que acreditam que o selo é um aviso para recrutadores. Outros que o veem como uma fraqueza, uma admissão de derrota.
Há múltiplos relatos no LinkedIn que contam experiências devastadoras de pessoas que estão se sentido vazias por dentro e sem propósito devido à procura incessante por uma vaga que nunca chega.
Processos longos e impessoais aumentam a sensação de invisibilidade para quem já está em uma situação vulnerável.
O desemprego prolongado não afeta apenas a rotina ou o bolso. Ele desestrutura o modo como a pessoa se percebe e se posiciona no mundo. “Quando a gente perde o crachá, perde também o pertencimento”, diz Ariana Fidelis. A quebra de vínculo com o ambiente profissional pode gerar não só angústia, mas uma sensação real de desconfiguração da identidade.
Muitas gente enfrenta esse período sem suporte emocional A rede de apoio se afasta, os convites diminuem, o ciclo de relações encolhe. “É comum que amigos parem de chamar para sair ou interagir com medo de constranger, ou por não saber o que dizer. O problema é que esse afastamento aprofunda ainda mais o sentimento de exclusão e de fracasso”, explica Ariana.
Tudo isso fragiliza ainda mais, tornando a angústia e a exaustão gigantes. De acordo com o Icasm, quase um terço dos trabalhadores desempregados afirmaram pensar em se ferir ou morrer. Está na hora de incluir escuta nos processos seletivos – mesmo os automatizados.