Códigos negros
No universo das tecnologias, códigos são instruções escritas em linguagem de programação que orientam os computadores a realizar tarefas específicas. Eles desempenham um papel fundamental na criação dos softwares e aplicativos que utilizamos o tempo todo e cada vez mais no nosso dia a dia.
A primeira vez que me deparei com códigos de programação, confesso que fiquei um pouco assustada, como quando não conseguimos identificar uma língua desconhecida. Afinal, a linguagem de programação não diz respeito a um povo, uma nação, mas a um grupo bem específico de humanos e máquinas espalhadas por quase todos os cantos desta Terra.
O ano era 2014, eu era uma das colaboradoras do Observatório de Favelas e, em parceria com o Olabi (que estava nascendo), realizamos uma RodAda Hacker. As RodAdas estavam acontecendo desde 2012 em São Paulo e consistiam em oficinas de um ou dois dias nas quais tutoras compartilhavam alguns princípios da linguagem da programação.
As vagas eram exclusivas para mulheres e, naquela época, ainda éramos pouquíssimas programadoras. Supostamente existia uma barreira para nossa inserção no mercado das tecnologias, historicamente marcada pelo protagonismo masculino.
Uma das informações que acessei nessa oficina me deixou encabulada: o primeiro algoritmo do mundo, utilizando o que hoje entendemos por linguagem de programação, foi criado na década de 1840 por Ada Lovelace, uma mulher (por isso o nome da atividade: RodAda Hacker).
Ada era matemática, filha de mãe solo, interessada na possibilidade de criar códigos para automatizar o trabalho de máquinas. Uma revolucionária. O que é difícil aceitar é que, mesmo assim, com protagonismo feminino em sua genealogia, a ciência da computação é marcada pela presença majoritária de homens brancos.
Hoje somos muitas e disputamos linguagens que consigam fazer chegar mais possibilidades de vida e futuro para meninas e mulheres.
Esse incômodo foi o pontapé para a criação da PretaLab, anos depois. Aos poucos, fui me juntando a mulheres que gostariam de disputar mais espaços no mercado de trabalho, que gostariam de exercer seus desejos e potências intelectuais no campo das ciências exatas. Por que não?
Aos poucos fui entendendo que não se trata apenas da linguagem da programação, mas de uma disputa ainda mais complexa sobre as linguagens que nos são permitidas utilizar para contar nossas próprias histórias.
Se os códigos podem ajudar a construir algoritmos, se eles são a base da linguagem da programação, então que conceitos, imaginários, sonhos e possibilidades de vida esses códigos carregam? Eu acredito na possibilidade do encontro entre as mulheres negras e indígenas e a linguagem da programação para a transformação de um mundo em desencanto.
Hoje somos muitas e disputamos linguagens – não só as de código, de computação, mas linguagens que consigam fazer chegar mais possibilidades de vida e futuro para meninas e mulheres.
Somos geradoras de sonhos e criamos códigos negros. Códigos capazes de alimentar novas bases de dados, que sejam capazes de contar outras histórias, que façam refletir sobre nossa memória e nossa ancestralidade.
Códigos Negros é também o nome de um evento que realizo no Olabi há quatro anos, em parceria com uma multidão de pensadores e artistas. Quando nos encontramos, em assembleias de convívio e trocas de experiências, percebemos a potência das tecnologias para nos conectar com nós mesmos.
A edição de 2023 aconteceu no dia 25 de novembro, ainda na energia do Dia de Zumbi, no espaço cultural Rato Branko, na Lapa, no coração do Rio. Este ano, com curadoria de Jonathan Nunes, conversamos sobre arte, memória, tecnologias e acervos. Mas não se trata apenas de conversas.
Tecnologias são tempos, corpos, territórios, performances e também linguagens. Quando nos aquilombamos em códigos negros estamos exercitando outras temporalidades que se manifestam em forma de gestos, estéticos e políticos, do corpo, da voz, da palavra, da memória ritual, do tempo que encena passado, presente e futuro, como nos ensina Leda Maria Martins com seu tempo espiralar.
Tenho me preocupado mais com a preservação dos acervos que viemos construindo como movimento social e estético. Naturalmente, não é do interesse das grandes corporações reservar recursos, preservar e construir nossas memórias e tecnologias para nos auxiliar a formar as contranarrativas que exaltem o protagonismo dos povos originários e em diáspora neste continente.
Então, vamos mobilizar nossos próprios recursos – corpos-tela, música, performance, arte, nossas entidades e ancestrais. Assim construímos futuros possíveis e ensaiamos histórias mais justas. Laroyê.