A igualdade é branca. A equidade de gênero também

A discrepância de programas específicos de desenvolvimento de carreira para mulheres negras representa um dos nossos maiores desafios

Créditos: GetFlashFiles/ FotografieLink/ iStock

Ana Bavon 5 minutos de leitura

Nos idos de 1990, um diretor polonês muito hypado, controverso e problemático chamado Krzysztof Kieślowski lançou a trilogia das cores. Uma sequência de três filmes com os títulos "A Liberdade é Azul", "A Igualdade é Branca" e "A Fraternidade é Vermelha".

A trilogia questiona de forma alegórica e sutil o sonho europeu da unificação por meio da ressignificação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

É muito interessante a forma como o diretor aborda a perspectiva do colonizador quando fala da ressignificação dos ideais de justiça e igualdade, que por eles mesmos foram deturpados ao longo da história.

A utopia me lembra um comportamento muito similar ao que vemos hoje quando os agentes hegemônicos que ocupam espaços de poder operam para o estabelecimento de uma sociedade mais equânime dentro do ambiente corporativo a partir de seus vieses.

Em "A Igualdade é Branca", o cenário é de denúncia sobre as diferenças. Os protagonistas são um casal de origens distintas, ele polonês e ela francesa, o primeiro vivendo como imigrante na “cidade luz”, Paris. Em nenhum momento há uma menção verbal à xenofobia ou ao racismo, mas os signos que permeiam o roteiro nos levam a questões sobre esses temas.

A língua, inclusive, é utilizada como instrumento de poder e dominação, elemento que denuncia o protagonista como não pertencente, como alguém que não faz parte daquele território e que não é um igual.

Na cena auge, que se passa em um tribunal, o protagonista questiona onde está a igualdade. Afinal, com a barreira na comunicação ele não consegue desenvolver a sua argumentação porque não domina o idioma. Ao final, fica absolutamente fora do alcance da justiça, já que aquele país não o compreende.

Crédito: MK2 Productions

Quando comecei a escrever este artigo eu já tinha em mente o assunto que queria abordar: a discrepância na ascensão de mulheres brancas e negras nas empresas que têm políticas e estratégicas para a equidade de gênero.

Ao decidir analisar a pesquisa realizada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT) e o Pacto Global da ONU e me deparar com o resultado, só consegui lembrar do título do filme de Kieślowski e da sua narrativa. A conclusão que cheguei, novamente, é que não só a igualdade é branca, mas a equidade de gênero também.

Durante a Rio Innovation Week, o Pacto Global da ONU e o CEERT apresentaram seu mais recente estudo sobre diversidade, equidade e inclusão nas empresas. O levantamento buscou mapear práticas de diversidade e inclusão existentes no meio corporativo, além de identificar desafios nesta agenda e propor melhorias. 

A maior parte das organizações que responderam o questionário tem mais de 500 funcionários (56%) e receita anual bruta acima de R$ 300 milhões (53%), ou seja, são consideradas grandes empresas.

Nós, mulheres negras, primeiro precisamos que o sistema nos reconheça como mulheres, pois até aqui ocupamos o lugar de “diversas”.

Foram inúmeros os insights promovidos pelo levantamento. Percebemos a incongruência entre o discurso e a prática no que se refere à priorização da agenda. Por exemplo, apesar de a maioria das empresas afirmar que DEI é uma prioridade institucional, essa prioridade não é compartilhada pela alta liderança e apenas 63,3% delas têm uma política de DEI efetivamente institucionalizada.

Perguntadas sobre quantas mulheres estão presentes na alta liderança, cargos executivos C-level, 63% responderam ter mulheres brancas em posições executivas, enquanto 30,5% responderam ter mulheres negras. Já no conselho de administração, 51,6% das empresas afirmaram ter mulheres brancas nessas posições, enquanto 8,6% afirmaram ter mulheres negras.

Aqui é possível constatar que mesmo com estratégias de avanço em equidade de gênero, os esforços beneficiam um mesmo grupo étnico. O grupo hegemônico se organiza para alcançar ideais de igualdade que partem de seus vieses de afinidade e senso de justiça, ou seja, esses ideais continuam beneficiando especificamente o seu mesmo grupo, garantindo a manutenção do status quo e ampliando as desigualdades.

Crédito: RF._.studio / Pexels

Quando perguntadas sobre programas específicos de encarreiramento de mulheres, 33,6% das empresas afirmam ter programas para mulheres brancas e 10,9%, programas específicos para mulheres negras.

A discrepância de programas específicos de desenvolvimento de carreira para mulheres negras representa um dos maiores desafios, já que enfrentamos desafios absolutamente diferentes e específicos.

Enquanto mulheres brancas estão em busca de igualdade de gênero, nós – mulheres negras – precisamos romper com a lógica do racismo, que nos estereotipa, objetifica e coloca em papéis enviesadamente estabelecidos. Ou seja, primeiro precisamos que o sistema nos reconheça como mulheres, pois até aqui ocupamos o lugar de “diversas”.

Exatamente como a narrativa do filme que deu origem ao título: não há uma menção verbal ao racismo invisível que compõem o tecido das relações humanas. Mas os códigos velados e as bases sobre as quais está fundada a cultura das organizações nos mostra que nem todas as mulheres “falam o mesmo idioma” que o ambiente de negócios. Como consequência, ficam de fora do senso de justiça das políticas estabelecidas para atingimento de metas de equidade.

    O equívoco estrutural denunciado pela pesquisa, nos mostra que embora haja intenção de justiça social pela via organizacional, as ações promovidas para o alcance dessas metas e ideais de justiça estão completamente conectadas com a visão de mundo do grupo que ocupa o poder de decisão.

    Muito embora haja avanços significativos na agenda de diversidade, equidade e inclusão nas empresas, ainda há muito trabalho a ser feito para que essa alta liderança compreenda o impacto real nos resultados quando a coisa certa a se fazer responde a uma estratégia sobre a coisa lucrativa a fazer.


    SOBRE A AUTORA

    Ana Bavon é advogada, fundadora, CEO e Head de Estratégia da B4People. Com clientes como Gol Smiles, Bayer, Basf, Alpargatas, Raízen, ... saiba mais