Como se parece o amanhã? E se parecesse com as crianças que você conhece?
A Anarcomaternidade rompe com a ideia de que infância é apenas uma preparação para a vida adulta e defende que a criança é um ser pleno no presente

É com alegria e um profundo senso de responsabilidade que escrevo pela primeira vez para a Fast Company Brasil. Estar aqui não é apenas um marco pessoal, mas um lembrete potente: o ato de pertencer sustenta identidades, projetos e a própria ideia de existência humana.
Desmond Tutu, arcebispo sul-africano e Nobel da Paz de 1984 por sua luta contra o apartheid, desafiou a filosofia cartesiana do "penso, logo existo" com uma verdade mais profunda: “eu sou porque nós somos”.
Esse pensamento, enraizado na filosofia africana, não é apenas uma bela reflexão. É um manifesto. Em um sistema que radicaliza a exclusão social, a cosmovisão africana, trazida pelo Nobel da Paz, se torna um antídoto para o essencialismo e o individualismo do neoliberalismo.
Mas como traduzir essa ética coletiva em um amanhã possível? Romper essa lógica exige mais do que reformas. Exige uma reinvenção das bases de como produzimos, distribuímos e nos relacionamos.
Vivemos uma onda avassaladora de individualização social, transformando questões sociais em questões individuais. Esse modus operandi se retroalimenta: o pensamento crítico das novas gerações está sendo erodido na raiz.
Crianças e adolescentes são confinados à periferia do convívio social, com habilidades emocionais e culturais terceirizadas a aplicativos, escolas padronizadas e ambientes controlados. O resultado? Uma geração condicionada a absorver narrativas – nunca a questioná-las. E se o amanhã for apenas um eco aprisionado no presente?
Se a vida imita a arte, esse apagamento da subjetividade juvenil ecoa em "A Fita Branca" (2009), de Michael Haneke. O filme retrata uma aldeia alemã pré-Primeira Guerra Mundial, onde crianças são moldadas por autoritarismo e repressão. Aprendem que questionar é perigoso e a obediência cega, sinônimo de sobrevivência.
A obra sugere que essa formação brutal pavimentou o caminho para regimes totalitários. O paralelo com hoje é perturbador: que amanhã estamos cultivando ao silenciar a infância?

Na realidade atual, o ostracismo juvenil não se dá através da brutalidade, mas por uma privatização sutil da infância. Telas excessivas, educação engessada e cidades inóspitas criam adultos passivos, incapazes de lidar com a complexidade. A alienação moderna não proíbe perguntas, ela asfixia a curiosidade.
Um alerta: isso raramente é fruto de negligência familiar. É sintoma de uma sociedade que prioriza o lucro sobre o cuidado. Trabalho exaustivo, cidades desenhadas para produtividade (não para vida) e a romantização da “superação solitária” deixam famílias encurraladas.
O QUE É ANARCOMATERNIDADE
Foi a partir dessa análise, reflexão, estudo e vivência que me dediquei a buscar uma nova forma de exercer a parentalidade e adotei o nome de Anarcomaternidade.
Partindo do princípio de que crianças são sujeitos autônomos, pensantes e capazes de decidir sobre sua existência – destinando ao adulto o papel de direcionador, considerando a imaturidade social da criança –, a Anarcomaternidade rompe com a ideia de que a infância é apenas uma preparação para a vida adulta.
Acreditando que a criança é um ser pleno no presente, ela propõe uma inversão radical: o amanhã só será diferente se as crianças de hoje forem tratadas como protagonistas do agora.
Se queremos adultos que transformem o mundo, precisamos de crianças que experimentem a textura da realidade
Longe de ser um manual neoliberal que joga a responsabilidade nas famílias, a Anarcomaternidade é um protesto. Expõe que cuidadores são tratados como entraves à produtividade e crianças, como projetos a serem “finalizados”. Questiona: e se as enxergássemos como agentes sociais capazes de ressignificar o agora – e, assim, reinventar o futuro?
Críticos argumentarão que é utopia em um mundo acelerado. Mas aí reside o ponto: naturalizamos tanto a exclusão infantil que sequer notamos sua ausência em praças, reuniões ou debates. Terceirizamos sua formação a algoritmos e instituições que replicam hierarquias, e não mentes críticas.
Algumas cidades já estão despertando para essa realidade. Barcelona tem apostado no "urbanismo infantil", criando praças e calçadas que incentivam o brincar livre e a participação das crianças no planejamento dos bairros.

Escolas democráticas como Summerhill, no Reino Unido, mostram que, quando as crianças podem decidir sobre seus aprendizados, desenvolvem autonomia e responsabilidade, não o caos.
É possível. Sempre foi.
Para isso, é urgente repensar não apenas o conceito familiar, mas o conceito de cidades com arquitetura que abrace o ócio criativo, empresas que respeitem a parentalidade e adultos dispostos a incluir crianças no convívio social.
Como se parece o amanhã? Ele não será inovador se for feito por mentes moldadas pelo mesmo sistema que promove a exclusão. Se queremos adultos que transformem o mundo, precisamos de crianças que experimentem a textura da realidade – não sua caricatura.
O amanhã tem a cara das crianças que ousamos incluir hoje.