Quem cuida das cuidadoras? Os desafios da invisibilização dos trabalhos das mulheres
Ao comentar o tema da redação do ENEM, especialistas apontam a falta de reconhecimento do trabalho das mulheres fora do ambiente profissional
O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2023 não só levantou reflexões em quem fez a prova no último domingo (5/11), mas também diversos setores da sociedade brasileira. A proposta era falar sobre os "desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
Segundo um relatório de 2020 da ONG Oxfam, intitulado “Tempo de cuidar”, enfermeiras, faxineiras, trabalhadoras domésticas e cuidadoras são em geral mal pagas, têm poucos benefícios e trabalham em horários irregulares, além de sofrerem problemas físicos e emocionais.
Três quartos de todo o trabalho de cuidado não remunerado do mundo é feito por mulheres, ainda de acordo com o levantamento, sendo que 42% não conseguem um emprego porque são responsáveis por todo o trabalho de cuidado, enquanto para os homens essa proporção é de apenas 6%.
Esse contexto foi alvo da pesquisa da professora Claudia Goldin, ganhadora do prêmio Nobel de Economia de 2023. Desde o final dos anos 1980, ela analisa a desigualdade de gênero entre homens e mulheres. Ela analisou dados econômicos de mais de 200 anos para levantar uma linha do tempo da trajetória da mulher no mercado de trabalho e concluiu que a "economia do cuidado" tem papel central nessa discussão.
TRABALHO INVISÍVEL
Para Lina Nakata, estudiosa da pesquisa FIA Employee Experience (FEEx), a escolha do tema neste momento é muito importante. "Vivemos em mundo com inequidade de gênero. As mulheres convivem com uma sobrecarga maior de trabalho, seja remunerado ou não-remunerado. Na América Latina, um terço de todo o trabalho feminino é remunerado, dois terças não são. Para os homens, essa proporção é oposta. Dessa forma, entendemos que não apenas o trabalho da mulher está invisível, mas também sem nenhum reconhecimento", afirma.
De acordo com o Fórum Econômico Mundial, levaria mais de 130 anos para equiparação de gênero no Brasil, o que traz prejuízos para o crescimento econômico do país.
"Um dos motivos para esse gap é que o trabalho doméstico e o cuidado de pessoas da família fica essencialmente para as mulheres e não é remunerado, tornando-o invisível em uma sociedade capitalista", explica Dani Junco, CEO da B2Mamy, comunidade que conecta mães e mulheres ao ecossistema tornando-as líderes por meio de educação, empregabilidade e pertencimento.
Além de terem seus papéis de cuidadoras invisibilizados, muitas mulheres enfrentam dupla jornada, equilibrando vida profissional e maternidade. Trata-se de um grande desafio, enraizado histórica e culturalmente na ideia de que o trabalho doméstico é dever da mulher. "Não só temos visto esses papéis sendo estabelecidos dessa forma pela sociedade como ainda vemos tudo isso reforçado por estereótipos", diz Lina.
"Esse papel da mulher é múltiplo e gigantesco quando falamos de cuidado. É muito clara, por exemplo, a diferença entre o papel de uma mãe e o de um pai, na maior parte das vezes. Nove em 10 vezes, quando os pais estão mais velhos e precisam de ajuda, é a mulher, representada pela filha, que vai dar esse suporte, também gerando essa inequidade", afirma a pesquisadora.
Para Dani, o machismo estrutural faz com que essa dupla jornada sobrecarregue a mulher e prejudique o crescimento na carreira e, muitas vezes, a geração de renda. "Temos mais de 20 milhões de mães solo no país, onde os pais não assumem a sua paternidade. De de acordo com o IBGE, em mais de 80% das casas só as mulheres têm a tarefa de cuidar das crianças e da casa."
COMO MUDAR ESSA REALIDADE?
Para a pesquisadora Lina Nakata, com essa discussão finalmente em pauta, é hora de trabalhar em iniciativas que possam mudar o cenário aos poucos.
"Um mundo mais equilibrado em termos de gênero pode impulsionar a economia em US$ 5 trilhões a US$ 6 trilhões, pois mais mulheres atuantes geram mais resultados, inclusive financeiros", afirma. "Não vejo nenhum grupo que não possa apoiar. A população é praticamente de metade homens, metade mulheres, então por que não podemos dividir os trabalhos, sejam remunerados ou não-remunerados?"
Os homens precisam ser chamados para essa conversa e tomar consciência de uma estrutura que os beneficia, mas que, a longo prazo, prejudica toda a sociedade.
Dani Junco defende que o setor público precisa incentivar políticas que protejam a liberdade financeira das mulheres que se dedicam à tarefa do cuidado, mas não são remuneradas.
"Depois disso, o setor privado pode incluir em suas práticas de governança benefícios que auxiliem a jornada principalmente na primeira infância, como licença maternidade estendida e licença parental", explica. "Por último os homens precisam ser chamados para essa conversa e tomar consciência de uma estrutura que os beneficia, mas que, a longo prazo, prejudica toda a sociedade", diz.
As empresas têm papel fundamental em capitanear mudanças dentro das organizações e impulsionar as jornadas dessas mulheres. Lina levanta várias ações que podem ser feitas para começar essa transformação.
"Uma empresa pode iniciar buscando informações sobre o cenário e o sentimento das pessoas. Será que todo mundo está consciente dessas questões? A partir disso, pode promover momentos de discussão sobre diversidade e inclusão de gênero, para então planejar a liderança balanceada", sugere.
Nesse processo, a empresa devem implementar metas para participação de mulheres em todas as áreas, estimular o desenvolvimento das profissionais, criar comitês multidisciplinares para realização de ações afirmativas, apresentar modelos de referência nas lideranças e, também muito importante, monitorar as diferenças salariais entre homens e mulheres e equilibrar a remuneração.
"As empresas precisam se conscientizar de que não dá para falar de ESG e deixar ações afirmativas sobre esse tema de fora", afirma Dani. "O S de sustentabilidade precisa ter investimento de tempo e dinheiro para ações afirmativas que realmente mudem os ponteiros."