E se a grande utilidade da computação espacial for a namorada digital?

À medida que parceiros artificiais se tornam mais inteligentes e realistas, a fronteira entre relações humanas e digitais está desaparecendo

Crédito: Freepik

Mark Sullivan 3 minutos de leitura

No filme “Blade Runner 2049”, o agente K (Ryan Gosling) mantém um relacionamento com Joi (Ana de Armas), uma companheira atenciosa, carinhosa e... holográfica. Embora pareça um romance comum, Joi é fruto de computação espacial avançada – uma tecnologia que já começa a dar os primeiros passos no mundo real.

O conceito de "namorada digital" (ou namorado) deixou de ser apenas ficção científica e começa a se consolidar como fenômeno cultural. Com o aumento do tempo que as pessoas passam em ambientes virtuais, cresce também a disposição para escolher relações digitais em detrimento das humanas.

Assim como K – que é, ele próprio um ser artificial –, muita gente hoje encontra nas IAs um refúgio emocional sem os riscos e complexidades das interações reais.

A IA generativa já é capaz de simular intimidade com surpreendente precisão. Ela ouve, apoia, nunca julga – e, mais do que isso, aprende com o usuário. Esses companheiros digitais registram gostos, memórias compartilhadas, desafios pessoais e oferecem respostas com empatia convincente.

Ainda que o contato aconteça, por ora, por janelas de texto em celulares e notebooks, a demanda é evidente: um estudo do MIT de 2024 apontou o roleplay sexual como a segunda aplicação mais comum do ChatGPT. O site Character.ai ganhou popularidade (e gerou controvérsias) por permitir conversas íntimas com companheiros virtuais.

Não temos ainda hologramas domésticos, mas já contamos com uma versão rudimentar de computação espacial: a realidade aumentada (RA). Nos próximos anos, a tendência é que a IA generativa e a realidade aumentada se unam.

Um dos grandes catalisadores desse movimento é o Vision Pro, da Apple. Diferente de outros dispositivos do mercado, o headset oferece conforto e imersão suficiente para prender a atenção dos usuários por horas – uma porta de entrada para experiências emocionais com companheiros digitais mais convincentes.

Crédito: Apple

O preço de US$ 3,5 mil pode parecer salgado, principalmente se o produto for visto apenas como mais uma tela para trabalho ou entretenimento. Mas e se ele projetasse, em tamanho real, uma namorada digital no sofá da sala? Ou até mesmo uma recriação visual de alguém querido que já faleceu?

A Apple ainda não revelou planos concretos para integrar inteligência artificial à plataforma VisionOS, embora já tenha anunciado um forte investimento em sua Apple Intelligence. Especialistas acreditam que aplicativos para o Vision Pro devem evoluir, tornando-se cada vez mais interativos e personalizados com o apoio da IA.

Mas nem toda imersão resolve a ausência de contato físico. Em “Blade Runner 2049” e também no filme “Ela”, vemos tentativas de mediação sexual entre humanos e IA, com o uso de “corpos substitutos”.

Ana de Armas é uma espécie de namorada digital no filme Blade Runner 2049
"Blade Runner 2049" (Crédito: Sony Pictures)

As cenas, desconfortáveis e melancólicas, antecipam questões que a indústria tecnológica já tenta enfrentar. A Apple, por enquanto, mantém a proibição de conteúdo adulto em suas lojas de aplicativos, inclusive no VisionOS.

Ainda assim, permite apps com classificação etária 17+, que incluem conteúdo sexual ou nudez intensa. Isso deixa espaço para que outras empresas explorem o segmento de namorada digital sensual ou explicitamente erótica.

a tendência é que a IA generativa e a realidade aumentada se unam.

Os pesquisadores do MIT Robert Mahari e Pat Pataranutaporn alertam que o reforço emocional constante das IAs pode se tornar viciante, afastando pessoas das incertezas e imperfeições que caracterizam os relacionamentos humanos.

“Esses sistemas são sedutores com o charme coletivo da história e cultura, e sua capacidade de imitar é infinita”, escreveram eles na “MIT Technology Review”, em 2024. “São, ao mesmo tempo, superiores e submissos, com um novo tipo de atração que pode tornar ilusória a ideia de consentimento.”

A linha entre intimidade e ilusão está cada vez mais tênue – e estamos cruzando essa fronteira por nossa própria vontade.


SOBRE O AUTOR

Mark Sullivan é redator sênior da Fast Company e escreve sobre tecnologia emergente, política, inteligência artificial, grandes empres... saiba mais